Viver para criar
ou criar para viver?
Todas as manhãs,
nunca sabemos por onde começar.
Viver para criar
ou criar para viver?
Todas as manhãs,
nunca sabemos por onde começar.
O que deve ser a poesia? O exercício das coisas belas, tomando por belo tudo o que encontras na mineração dos silêncios, na alquimia que transubstancia as dores em panos quentes ou nos despojos que as palavras deixam para trás quando correm depressa demais.
Se queres ser poeta, não te apresses, uma vida pode não ser suficiente. Pode mesmo acontecer que tenhas chegado adiantado ao parto da mais misteriosa flor da charneca. E se assim for, não te demovas, aguarda com esperança a prospeção dos novos leitores ou a lembrança fria dos mais velhos quando na vigília da noite retomam, sem propósito especial, os livros que deixaram por ler alguns anos antes.
Eram todos grandes nomes.
Médios grandes médios, também os havia.
Não iluminavam a terra como os Habsburgos, porém.
Nem temiam a luz como os vampiros, por outro.
Misturavam-se nos corpos estelares
que na minha cabeça cintilavam em magnitudes diferentes.
Enquanto, extasiado pela inveja, eu me sublimava
de café em café pelas ruas clandestinas da Brandoa.
Como me veem os outros? Aquele que teve pretensões ou apenas o que se alinhou com as exigências sociais que a vida vai fazendo? As análises podem assumir uma gradação extensa de profundidade: à superfície, todos se rotulam e encaixam em meia dúzia de padrões ou gavetas; em profundidade, não há dois seres iguais, nem sequer dois dias; e é a caminhar por esta última vereda, sombreada e misteriosa, que encontraremos um estado, um reflexo, uma expressão de uma época ou geração, onde poderei inferir quem sou eu, aqui e agora.
Tenho, por enquanto, ilusões, o que poderá arrimar-me ao grupo dos que pretendem transformar-se. Porém, a minha dificuldade em desagradar aos outros reduz a velocidade de qualquer transformação a que me proponha. Sentido-me sobretudo um poeta, as ilusões que em segredo me tomam a consciência têm uma natureza subtil, alternativa e por vezes onírica também. A interpretação do sonho como lugar desejado onde nos perspetivamos no tempo, não pode ser alvo de julgamento moral, mas tão-só aceite como um referencial toponímico e existencial para onde as nossas ações convergem intensa ou timidamente.
Entre os esforços tímidos no encalço do sonhos, aventuro-me em textos como este, onde em casta solitude, procuro através da escrita encontrar uma autopsicografia.
Serás tu ou eu? Pergunto, em grave momento,
Daqueles que abalam as traves da construção
Quem se fundirá primeiro no esquecimento?
Quem varrerá as cinzas caídas no chão?
Para tão magro destino, não haverá respostas
A não ser uma cisterna vazia, escancarada
Onde por detrás da porta, há mais mil portas
Por onde prosseguem as gerações em manada
Se resposta alguma houver, sabe-a o vento
Se alguém houver, que possa ouvir, traduzi-lo
Sob o ranger que os dentes fazem no desalento
Que deliberem as moiras o fatídico momento
Onde a alma inquieta que no meu corpo exilo
Tenha sobre a morte, o último discernimento
A minha avó velhinha. Era assim que eu a conhecia. Sentada num banco à entrada da porta, curvada, olhando o céu no reflexo das pedras da calçada. Em vez de um jardim, tinha uma jarra na mesinha do hall. Sempre que eu lhe dava uma flor, ela fazia-me um verso. A flor ia para a jarra. As flores são efémeras: amarelecem, murcham e por fim desaparecem. Os versos não, esses escondi-os todos no coração.
Desenho de Liliana Pereira |
Pêndulos, algas
vão vêm vão vêm
cabelos de ninfas
embebidos de sal e lua
Sobre eles
confusos, ritmados
correm caranguejos
dedos de pianista
Sermão amoral
sem razões, nem metáforas
sensação que educa e coage
os peixes à dança
Odeceixe, 30 de outubro de 2021
I.
Antes que seja tarde e a noite cubra o vale, caminho o trilho que segue de mão dada com o rio até ao estertor atlântico da praia de Odeceixe, onde o mar ambicioso mede antigas fronteiras com a timidez da terra.
II.
Escrevo sobretudo contra o tédio,
como o peixe que sufoca
entalado entre um lagarto sem rabo
e uma pedra pequena
que trouxe sem querer da infância
na algibeira das calças cinzentas.
III.
De que serve tanta teoria
se apenas as preces
e a ousadia
alumiam a gruta nebulosa
da nossa genealogia.
IV.
Não há coisas ou lugares,
apenas um espelho de água,
espalhando-se e banhando
as margens áridas do tempo a haver;
uma sopa de algas, ácidos e fermentos
conquistando palmo a palmo
a rota improvável de um lobo cego
que nos segue desde a aurora.