24/11/2021

Nota um jovem poeta

 O que deve ser a poesia? O exercício das coisas belas, tomando por belo tudo o que encontras na mineração dos silêncios, na alquimia que transubstancia as dores em panos quentes ou nos despojos que as palavras deixam para trás quando correm depressa demais.


Se queres ser poeta, não te apresses, uma vida pode não ser suficiente. Pode mesmo acontecer que tenhas chegado adiantado  ao parto da mais misteriosa flor da charneca. E se assim for, não te demovas, aguarda com  esperança a prospeção dos novos leitores ou a lembrança fria dos mais velhos quando na vigília da noite retomam, sem propósito especial, os livros que  deixaram  por ler alguns anos antes.


20/11/2021

Uma classe média demasiado alta

Eram todos grandes nomes.

Médios grandes médios, também os havia.

Não iluminavam a terra como os Habsburgos, porém.

Nem temiam a luz como os vampiros, por outro.

Misturavam-se nos corpos estelares

que na minha cabeça cintilavam em magnitudes diferentes.

Enquanto, extasiado pela inveja, eu me sublimava 

de café em café pelas ruas clandestinas da Brandoa.



Autopsicografia

     Como me veem os outros? Aquele que teve pretensões ou apenas o que se alinhou com as exigências sociais que a vida vai fazendo? As análises podem assumir uma gradação extensa de profundidade: à superfície, todos se rotulam e encaixam em meia dúzia de padrões ou gavetas; em profundidade, não há dois seres iguais, nem sequer dois dias; e é a caminhar por esta última vereda, sombreada e misteriosa, que encontraremos um estado, um reflexo, uma expressão de uma época ou geração, onde poderei inferir quem sou eu, aqui e agora.

    Tenho, por enquanto, ilusões, o que poderá arrimar-me ao grupo dos que  pretendem transformar-se. Porém, a minha dificuldade em desagradar aos outros reduz a velocidade de qualquer transformação a que me proponha. Sentido-me sobretudo um poeta, as ilusões que em segredo me tomam a consciência têm uma natureza subtil, alternativa e por vezes onírica também. A interpretação do sonho como lugar desejado onde nos perspetivamos no tempo, não pode ser alvo de julgamento moral, mas tão-só aceite como um referencial toponímico e existencial para onde as nossas ações convergem  intensa ou timidamente.

    Entre os esforços tímidos no encalço do sonhos, aventuro-me em textos como  este, onde em casta solitude, procuro através da escrita encontrar uma autopsicografia.   


18/11/2021

O último discernimento

Serás tu ou eu? Pergunto, em grave momento,

Daqueles que abalam as traves da construção

Quem se fundirá primeiro no esquecimento?

Quem varrerá  as cinzas caídas  no chão?


Para tão magro destino, não haverá respostas

A não ser uma cisterna vazia, escancarada

Onde por detrás da porta, há mais mil portas

Por onde prosseguem as gerações em manada


Se resposta alguma houver, sabe-a o vento

Se alguém houver, que possa ouvir, traduzi-lo

Sob o ranger que os dentes fazem no desalento


Que deliberem as moiras o fatídico momento

Onde a alma inquieta que no meu corpo exilo

Tenha sobre a morte, o último discernimento


12/11/2021

De manhã, junto ao mar

Há uma sensação de liberdade em tudo o que se solta e esvoaça irregular ao arbítrio do vento. Se se encaminha pelo mar adentro, perdemos-lhe o rasto, a cor, a forma. Morrer também deve ser assim: deixamos de ser vistos, devido à contraluz de um azul que persiste.

O teatro e o efémero

Passo pelos prédios e fico orgulhoso pelos pedreiros, pelos serventes, por todos aqueles que ergueram uma casa para os outros. Deve ser boa essa sensação de ter construído algo tão sólido e necessário. Mesmo que possa ser provocado pela necessidade de uma retribuição monetária, construir um lar é também uma forma de amor ao outro. 

 Quando assisto a algumas cenas teatrais, sou tocado pela súbita aparição do belo. E a beleza torna-se, naquele momento, também numa manifestação de bondade.
Porém, ao contrário das casas de tijolo e cimento,  sinto aquela figuração efémera, vapor de água que se esfuma e desaparece. Esse é uma característica   diferenciadora do teatro ante outras formas de contar uma história: é irrepetível. Aquela cena acontece e  jamais se repetirá. Por mais que os atores tentem, ela será sempre diferente em cada  atuação. Temos de estar presentes e atentos para a testemunhar. Essa condição  faz do teatro um fenómeno  muito especial entre os sortilégios da humanidade. Numa civilização que tende para a virtualidade, esta experimentação exclusiva e absolutamente  real torna-se ainda mais valiosa.

10/11/2021

A jarra

A minha avó velhinha. Era assim que eu a conhecia. Sentada num banco à entrada da porta, curvada, olhando o céu no reflexo das pedras da calçada. Em vez de um jardim, tinha uma jarra na mesinha do hall. Sempre que eu lhe dava uma flor, ela fazia-me um verso. A flor ia para a jarra. As flores são efémeras: amarelecem, murcham e por fim desaparecem. Os versos não, esses escondi-os todos no coração.


Desenho de Liliana Pereira






06/11/2021

Constituintes harmónicos da marés

Pêndulos, algas

vão   vêm   vão   vêm

cabelos de ninfas

embebidos de sal e lua


Sobre eles

confusos, ritmados

correm caranguejos

dedos de pianista


Sermão amoral

sem razões, nem metáforas

sensação que educa e coage

os peixes à dança

05/11/2021

A compulsão dos homens

Como é ténue e desalinhada a compulsão  dos homens, quando levam na mão uma réstia de vela onde a luz estremece com a brisa que assoma pela soleira da porta. 

A meio do corredor perguntam-se: se hão de ir até ao fim ou voltar ao lugar que já não existe mais.


01/11/2021

Antes que seja tarde

 Odeceixe, 30 de outubro de 2021


I.

Antes que seja tarde e a noite cubra o vale, caminho o trilho que segue de mão dada com o rio até ao estertor atlântico da praia de Odeceixe, onde o mar ambicioso mede antigas fronteiras com a timidez da terra.


II.

Escrevo sobretudo contra o tédio,

como o peixe que sufoca

entalado entre um lagarto sem rabo

e uma pedra pequena

que trouxe sem querer da infância

na algibeira das calças cinzentas.


III.

De que serve tanta teoria

se apenas as preces

e a ousadia

alumiam a gruta nebulosa

da nossa genealogia.


IV. 

Não há coisas ou lugares,

apenas um espelho de água,

espalhando-se e banhando

as margens áridas do tempo a haver;

uma sopa de algas, ácidos e fermentos

conquistando palmo a palmo

a rota improvável de um lobo cego

que nos segue desde a aurora.