19/05/2022

Maria dos Pombos

 As manhãs pareciam-lhe agora, que fizera 50 anos, com pouco sentido. Apetecia-lhe dar, cuidar.

 Porém, um não sei quê que pairava no ar fazia-a acreditar que a ternura, as isenções da bondade traziam consigo um comércio de espíritos, uma bolsa de valores demasiado popular, onde as ações humanas subiam e desciam, enriquecendo parentes longínquos, criando bolhas especulativas de amor, de atenção que mais tarde se transformariam em ódios, defaults e bancarrotas.

Preferia dar em segredo, fora do mercado dos afetos, que julgava cada vez mais falso.

Decidiu, por isso, dar a mão a quem não o revelasse a seguir, como fazia Cristo depois dos milagres.

Encaminhou-se para o supermercado e comprou um saco de amendoins para dar aos pombos que viviam perto da sua varanda.

Sentiu-se bem e — sem perceber, nem se questionar — continuou a fazê-lo todas as manhãs.

Agora quando chegava das compras, os pombos já a esperavam naquele caminhar engraçado de palhaços pobres calçando sapatos enormes.

Quando se distraiam com as horas, desciam à pressa e em bando para o varandim, como se fossem uma multidão de anjos, como se o céu descesse à terra.

Depois de lançar os bagos, sentava-se por detrás da janela. E ali ficava, a trabalhar no computador, contemplando os frutos da sua missão.

Alguns olhavam-na através dos vidros, bicando-os depois para a chamar. Esta, por sua vez, distraia-se com as estratégias deles, suas rivalidades, suas peripécias para comerem mais bagos. Não eram afinal muito diferentes dos humanos.

Via tudo aquilo entretida e remediada como se assistisse a um episódio da BBC Selvagem.

Era este o seu novo ritual: dar sem qualquer expectativa de receber, ainda que se sentisse de novo imensamente desejada e necessária pelos seus protegidos, os pombos.




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