02/06/2024

A queda

Estou ainda em choque e por isso nada funciona como antes:

as manhãs, o rolo dos estores, o azul, o antigo significado 

que explorava nas coisas.

O leite coalhou, a gata agora é de papel normal

e poderei arquivá-la na estante mais baixa da sala.


O mundo mudou e não me avisou.

Talvez me tenham feito pequenos gestos

a que não terei dado o devido sentido.


E o que farei agora, mãe, que te vi sofrer como um animal ferido?

Nem tinha percebido que estive durante 56 anos sempre ao teu colo

 — mesmo quando dançava louco ou corria atrás da passarada

ou  fingia amar as raparigas atrás dos pavilhões do velho liceu.


Eras a jarra de flores que estava em cima do móvel do hall de entrada

e caiu agora desamparada.

Resta saber se o tapete persa e felpudo amparou-te, ou não, a queda?

2 comentários:

Graça Pires disse...

O seu poema comoveu-me. Talvez ande demasiado sensível, mas a verdade é que chorei ao lê-lo. Não tenho palavras.
Uma boa semana.
Um beijo.

carlos perrotti disse...

Poemazo le llamamos por aquí, amigo.
Admirable destreza para entrelazar versos y a la vez narrar.
Perdona la demora en venir a leerte. Es un rato te subo al Gaterío como quedamos. Un honor que quieras estar.
Abrazo hasta vos.