28/07/2023

No way out



Talvez isto nem sejam versos,
nem hajam sequer netos para lê-los algum dia.
E pela margem das margens
continue a fazê-los até cair na ganga da noite.

Talvez não ame o suficiente a cruz para fazer dos gritos,
o silêncio exigível de quem pede desculpa a Deus,
nem seja a mão esquerda dos meus inimigos,
nem alumie sequer a sombra dos meus medos.

Talvez eu seja apenas o gato
de uma tia que vive sozinha na aldeia,
a formiga anónima no carreiro
a caminho de uma casca de queijo
que um velho desdentado não conseguiu morder.

E porque escrevo eu?
Terei ainda aquela réstia de vontade
que trouxe da infância
quando olhava soldadinhos de plástico
por trás do vidro da montra da loja dos brinquedos?

Serei o que quero?
Mas se quero o impossível,
nunca serei nem a probabilidade mínima do que desejo.

O sino bate as meias-horas
e eu sinto-me como ele,
sempre metade de qualquer coisa,
sempre atrasado para a partida,
por esquecimento, por apatia
ou simples cobardia.

Esquecido dos deveres, das heranças que não merecia,
fico sentado a escrever versos como estes,
versos-crosta que descarno depois com os dedos
até ficarem outra vez em ferida.

Mas qual o sentido de tudo isto?
Perguntei-me ontem à noite,
chegando à mesma conclusão de um cão que vadia:
sobreviver de osso em osso; roer-lhes os nervos;
lamber-lhes o tutano que ninguém quis;
fingindo depois que ladro ao infinito.

Será este zumbido
que me oculta a marcha triunfante do destino?
Não acredito. Nasci para viver sem dúvidas
como qualquer mendigo,
mas nem esse natural desígnio eu consigo.

Sem comentários: