06/07/2020

O dilúvio

Dizem que anda um vírus no ar. Daqui para acolá. Explorando narizes, gargantas áureas, o forro das mãos e jardins felizes.

Quiçá a cigarra que canta a cegarrega do Estio já o viu a esquivar-se para o turno da noite?
Ou foi aquele pardal sadio que lançou o boato?

As televisões agigantam-se: será verdade que o maligno soprou seu canto de sereia ao ouvido do Criador, adormecendo-O um século apenas, deixando o mal plantando na cidade inventada sobre um velho bosque natural?

E agora senhores quem acorda Deus se as preces se rezam rasteiras tão presas aos lábios que nem as teias de aranha se mexem com o vento das palavras ?

Todas as noites, na hora do telejornal, cada pergunta acumula novas respostas e o que era irmão  e pessoal se torna viral, mundano, habitual.

Habituados ao terror, os animais tentam nadar sob os pingos cheios do dilúvio. Alguns alcançam a arca, outros nem tanto.

Mais tarde, muito mais tarde chegará a pomba e o pequeno rebento da oliveira, que cresceu durante este tempo longínquo, quintal da Terra repetidamente prometida.






2 comentários:

CÉU disse...

Um tema muito atual, sem dúvida, mas a que deu muito encanto e beleza.
O Luís e a sua religiosidade.
Deus, se existe, pode pôr um ponto final num ápice nesta pandemia e noutras desgraças, mas ele depois de ter criado o homem, arrependeu-se de o ter feito. Então, Ele que tudo sabe, não sabia, antecipadamente, que o homem só faria disparates?

Luís Palma Gomes disse...

A questão da fé não cabe num comentário, nem sequer se discute, porque não é um fenómeno da dimensão racional. Mas é como diz, a "minha" religiosidade já pertence a uma dimensão cultural que me ajuda a entender, a suportar e a acreditar que tudo na vida tem um sentidos (O Cosmos em detrimento do Caos). Quanto aos desígnios de Deus são aparentemente insondáveis. Nunca os vamos entender. O Deus Judaico-Cristão não tem uma história, nem um nome - e como tudo aquilo que não podemos nomear, não podemos conhecer verdadeiramente. "Javé", assim chamam "Deus" no velho testamento, significa "Eu sou aquele que sou" em hebraico. Esta afirmação leva-nos à entidade absoluta que realmente Ele é e que tudo contém. Nós, como seres por Ele agraciados com a dávida da vida, não o podemos entender porque para tal precisaríamos de o compreendermos na sua globalidade - o que é de facto impossível. Coitados de nós: julgamo-nos tão inteligentes e depois não conseguimos controlar meia dúzia de moléculas de ADN revestidas por uma cobertura gordurosa, neste caso, o vírus do COVID-19. Porém, os filósofos e os teólogos ao longo da história lá foram criando um conjunto de argumentos para provar a existência de Deus (Argumento Ontológico) e existência do Mal e do Bem (Argumento do Livre-Arbítrio). Para mim, Deus não existe para ser compreendido, mas para ser respeitado, se quiser, temido. Jesus Cristo veio dar-lhe uma nova dimensão, a do amor ao próximo, a do amor como coisa universal e não como pertença de um povo ou etnia, com as suas leis ou tradições. Depois as religiões lá conseguem traduzir esse amor em fenómenos mais mundanos. Mas Jesus disse que havia apenas dois mandamentos:"Ama Deus e ama o próximo". Mais simples e eficaz, era difícil. Porém, também lhe digo que é uma tarefa muito árdua ser um bom católico. Eu ainda não sou, mas não desisto.