19/08/2025

Diário Impessoal - Enquanto espero o guisado

Enquanto aguardo o almoço, vou escrevinhando na toalha de papel:

"As coisas abrem-se ao olhares.
Por isso é difícil escrever numa toalha de papel 
num restaurante meio cheio.
Escrever é um processo envergonhado:
uma mulher que se despe para vestir um fato de noite,
que se pinta, se penteia ao espelho
e só quando se sente pronta
se mostra a quem escolher.

Escrever é isso:
despir e vestir-se,
sempre com a suspeita
de que falta um retoque na maquilhagem,
ou de que afinal os sapatos
não combinam com a cor do batom.

Termas de São Pedro do Sul, Agosto de 2025

17/08/2025

Diário Impessoal - A piscina

Carvalhais (São Pedro do Sul), 17 de Agosto de 2025



Atrás de mim, a azáfama da água, o choro das crianças, um rumor de conversas que se adensa em redor da piscina. À minha frente, o vale: um carvalhal entremeado de medronheiros, cedros e árvores cujo nome ignoro. Estou na terra de Lafões, em pleno vale do Vouga. As casas dividem-se entre solares senhoriais e brasonados e as de lavoura — por baixo, a antiga loja que albergava o gado guarda agora o trator.


Ontem fomos à missa. Pareceu-me demasiado ritualizada: o sacrifício, a cruz, a oblação, o altruísmo absoluto. Não havia salmista (talvez de férias). Mas Deus estava ali — está em todo lugar onde se reúnam dois cristãos. Via-se no olhar das pessoas, sobretudo no instante em que o padre ordenou: “Saudai-vos uns aos outros”.


Notei também que por aqui as cabeças de muitos homens são maiores, largas como os troncos que os rodeiam. As mulheres, portuguesas no sentido etnológico: trabalhadeiras, cuidadoras, simples no vestir. Os imigrantes são ainda poucos, ao contrário do que sucede nas grandes cidades.


Mergulha-se na piscina como se mergulha numa lusitanidade que resiste: identidade secular que persiste tanto no gesto humano como na paisagem que o enquadra.



10/08/2025

As primeiras palavras dos poemas



Quando começo a pensar um poema, duas palavras assaltam-me frequentemente a consciência: “Todo” e “Talvez”.

A primeira parece exprimir um desejo inconsciente de absoluto — não um absoluto hegeliano, em constante transfiguração histórica, mas um absoluto teológico, sagrado, encerrando em si qualquer possibilidade que fuja à sua própria enunciação.

O “Talvez”, ao contrário, parece nascer noutro lugar da alma. É sinónimo de contingência, de incerteza; é a palavra a que todo o ente recorre para lidar com as inúmeras probabilidades que não controla.

Assim, “Todo” e “Talvez” são, para mim, as primeiras palavras de um poema — não como tema, mas como centelhas. Servem-me elas para delimitar, na medida do possível, uma morada respirável onde o poema possa chegar ao fim, como quem enche os pulmões antes de mergulhar.