30/12/2021

Escrever o verde

 É por demais difícil

escrever o verde,

sobretudo quando ainda

reluzem sobre ele as gotículas da aurora.

Talvez os escaravelhos

saibam mais sobre as cores que os pintores,

e os rouxinóis, mais que os maestros

sobre música.

Talvez cantem a mesma canção há milénios

sem que lhes tenha afligido a necessidade

de mudar as notas.


Inquietas, as pessoas não param:

de cá para lá,

de lá para cá,

num passeio digno

de fera à procura da fresta.

Sem saber se devem sair

ou entrar na cela.

28/12/2021

Possibilidades

Talvez seja demasiado tarde,

talvez seja ainda cedo,

talvez não baste

ou seja, mesmo demais.

~

Olho para trás

e desconfio que não valeria a pena

voltar ao último cruzamento.

Olho para a frente

e a estrada estende-se

até ao infinito sem que nada de reluzente

se eleve da paisagem.


Os que por mim passam em sentido contrário,

sussurram a impenitência, o desconforto

do caminho que tenho de percorrer.


Talvez seja pertinente

escrever, escrever

como se as folhas brancas 

fossem aqueles pequenos recortes do rio

onde as águas param e ali estagnadas ficam

para apodrecer ou evaporar.


Talvez por debaixo dessas poças,

surja um húmus negro, lamacento, nauseabundo,

mas ideal para uma erva, rasa e trivial, nascer.

23/12/2021

«A FARSA DO ACIONISTA»


Entram marido e mulher no consultório.

Médico - Traz a sua mulher, Sr.Borges?

Sra.Borges -  Ele não consegue  expressar-se sozinho.

Médico - O que o preocupa, Sr.Borges?

Sr.Borges - Lu...cro...Lu...cro...Lu...cro.

Sra.Borges - É isto, Sr.Doutor, o dia todo.

Médico - É o sindroma do cuco.

Sra.Borges - Tem cura?

Médico - Um tratamento de seis meses a receber o ordenado mínimo deve ser suficiente.

18/12/2021

Manhãs Dionisíacas

A manhã é uma gaivota

saída do bolso de uma nuvem calçada.


Só por aqui, folha de papel, se acabaram os limites,

as atenções especiais ao movimento dos braços,

as ténues impressões que os lábios causam ao abrir.


Apenas uma ideia escorre sobre a celulose espalmada,

encaminhado-se para onde as musas entram,

uma a uma, com as suas túnicas ousadas.


Ali aguardam, estátuas de sal,

que o poeta as convoque 

para a roda do riso e da dança.

16/12/2021

A imagem

 Era manhã. Na árvore, saltitava a toutinegra embolada pelo frio. Os ramos nus, apontados ao céu, pareciam os dedos de uma mão aberta à espera de agarrar a pouca luz. Imaginei aquele momento repetindo-se pelo tempo adentro: imagem atrás de imagem atrás de imagem, replicando-se assim para além da vida  de um homem. 

Senti-me então redimido ao pressupor que depois de mim ainda ali estariam a árvore e a toutinegra, enfrentando o inverno com pulos singelos e sobretudo que haveria um olhar novo, mais novo que o meu: de uma criança, desejei.

11/12/2021

Passeio literário pelas altas montanhas da Amadora

A pequena malva

recolhe e guarda 

os raios de sol.

Faz verdes digestões

em silêncio

para que os pássaros

possam ouvir-se entre eles.


Aqui estiveram os moinhos,

altaneiros e bojudos,

com as suas velas angulares.

O vento curioso, porém,

ainda os procura.


«São eles, os estorninhos».

Voam em revoadas circulares,

em torno de uma torre invisível.

Procuram um caminho,

uma rota para algures.

Rodam, rodam, indecisos.

Ali, sobre os telhados velhos,

exploram um sentido

para a sua história.


 

10/12/2021

Impressões

 Nunca percebeste que a soma das coisas não era a coisa somada, nem que a primeira impressão era uma mentira grosseira ou uma antecipação forçada, nem que tudo começa antes do início e acaba muito antes do fim, nem que aquilo a que chamas novo é, na verdade, algo de que já ninguém lembrava. 

Eu sinceramente também já não me recordava destes condicionalismos da consciência próprios da existência e da coabitação em tempos rápidos e abertos. Se não fosse uma sopa indigesta que me tirou o sono e um livro clarividente de um cego chamado Borges que li depois, não me teria apercebido destas singelas brutalidades que te roubam a perceção  apurada e os momentos de indeterminação que Bergson achava afeitos às leis do bom convívio.

24/11/2021

Nota um jovem poeta

 O que deve ser a poesia? O exercício das coisas belas, tomando por belo tudo o que encontras na mineração dos silêncios, na alquimia que transubstancia as dores em panos quentes ou nos despojos que as palavras deixam para trás quando correm depressa demais.


Se queres ser poeta, não te apresses, uma vida pode não ser suficiente. Pode mesmo acontecer que tenhas chegado adiantado  ao parto da mais misteriosa flor da charneca. E se assim for, não te demovas, aguarda com  esperança a prospeção dos novos leitores ou a lembrança fria dos mais velhos quando na vigília da noite retomam, sem propósito especial, os livros que  deixaram  por ler alguns anos antes.


20/11/2021

Uma classe média demasiado alta

Eram todos grandes nomes.

Médios grandes médios, também os havia.

Não iluminavam a terra como os Habsburgos, porém.

Nem temiam a luz como os vampiros, por outro.

Misturavam-se nos corpos estelares

que na minha cabeça cintilavam em magnitudes diferentes.

Enquanto, extasiado pela inveja, eu me sublimava 

de café em café pelas ruas clandestinas da Brandoa.



Autopsicografia

     Como me veem os outros? Aquele que teve pretensões ou apenas o que se alinhou com as exigências sociais que a vida vai fazendo? As análises podem assumir uma gradação extensa de profundidade: à superfície, todos se rotulam e encaixam em meia dúzia de padrões ou gavetas; em profundidade, não há dois seres iguais, nem sequer dois dias; e é a caminhar por esta última vereda, sombreada e misteriosa, que encontraremos um estado, um reflexo, uma expressão de uma época ou geração, onde poderei inferir quem sou eu, aqui e agora.

    Tenho, por enquanto, ilusões, o que poderá arrimar-me ao grupo dos que  pretendem transformar-se. Porém, a minha dificuldade em desagradar aos outros reduz a velocidade de qualquer transformação a que me proponha. Sentido-me sobretudo um poeta, as ilusões que em segredo me tomam a consciência têm uma natureza subtil, alternativa e por vezes onírica também. A interpretação do sonho como lugar desejado onde nos perspetivamos no tempo, não pode ser alvo de julgamento moral, mas tão-só aceite como um referencial toponímico e existencial para onde as nossas ações convergem  intensa ou timidamente.

    Entre os esforços tímidos no encalço do sonhos, aventuro-me em textos como  este, onde em casta solitude, procuro através da escrita encontrar uma autopsicografia.   


18/11/2021

O último discernimento

Serás tu ou eu? Pergunto, em grave momento,

Daqueles que abalam as traves da construção

Quem se fundirá primeiro no esquecimento?

Quem varrerá  as cinzas caídas  no chão?


Para tão magro destino, não haverá respostas

A não ser uma cisterna vazia, escancarada

Onde por detrás da porta, há mais mil portas

Por onde prosseguem as gerações em manada


Se resposta alguma houver, sabe-a o vento

Se alguém houver, que possa ouvir, traduzi-lo

Sob o ranger que os dentes fazem no desalento


Que deliberem as moiras o fatídico momento

Onde a alma inquieta que no meu corpo exilo

Tenha sobre a morte, o último discernimento


12/11/2021

De manhã, junto ao mar

Há uma sensação de liberdade em tudo o que se solta e esvoaça irregular ao arbítrio do vento. Se se encaminha pelo mar adentro, perdemos-lhe o rasto, a cor, a forma. Morrer também deve ser assim: deixamos de ser vistos, devido à contraluz de um azul que persiste.

O teatro e o efémero

Passo pelos prédios e fico orgulhoso pelos pedreiros, pelos serventes, por todos aqueles que ergueram uma casa para os outros. Deve ser boa essa sensação de ter construído algo tão sólido e necessário. Mesmo que possa ser provocado pela necessidade de uma retribuição monetária, construir um lar é também uma forma de amor ao outro. 

 Quando assisto a algumas cenas teatrais, sou tocado pela súbita aparição do belo. E a beleza torna-se, naquele momento, também numa manifestação de bondade.
Porém, ao contrário das casas de tijolo e cimento,  sinto aquela figuração efémera, vapor de água que se esfuma e desaparece. Esse é uma característica   diferenciadora do teatro ante outras formas de contar uma história: é irrepetível. Aquela cena acontece e  jamais se repetirá. Por mais que os atores tentem, ela será sempre diferente em cada  atuação. Temos de estar presentes e atentos para a testemunhar. Essa condição  faz do teatro um fenómeno  muito especial entre os sortilégios da humanidade. Numa civilização que tende para a virtualidade, esta experimentação exclusiva e absolutamente  real torna-se ainda mais valiosa.

10/11/2021

A jarra

A minha avó velhinha. Era assim que eu a conhecia. Sentada num banco à entrada da porta, curvada, olhando o céu no reflexo das pedras da calçada. Em vez de um jardim, tinha uma jarra na mesinha do hall. Sempre que eu lhe dava uma flor, ela fazia-me um verso. A flor ia para a jarra. As flores são efémeras: amarelecem, murcham e por fim desaparecem. Os versos não, esses escondi-os todos no coração.


Desenho de Liliana Pereira






06/11/2021

Constituintes harmónicos da marés

Pêndulos, algas

vão   vêm   vão   vêm

cabelos de ninfas

embebidos de sal e lua


Sobre eles

confusos, ritmados

correm caranguejos

dedos de pianista


Sermão amoral

sem razões, nem metáforas

sensação que educa e coage

os peixes à dança

05/11/2021

A compulsão dos homens

Como é ténue e desalinhada a compulsão  dos homens, quando levam na mão uma réstia de vela onde a luz estremece com a brisa que assoma pela soleira da porta. 

A meio do corredor perguntam-se: se hão de ir até ao fim ou voltar ao lugar que já não existe mais.


01/11/2021

Antes que seja tarde

 Odeceixe, 30 de outubro de 2021


I.

Antes que seja tarde e a noite cubra o vale, caminho o trilho que segue de mão dada com o rio até ao estertor atlântico da praia de Odeceixe, onde o mar ambicioso mede antigas fronteiras com a timidez da terra.


II.

Escrevo sobretudo contra o tédio,

como o peixe que sufoca

entalado entre um lagarto sem rabo

e uma pedra pequena

que trouxe sem querer da infância

na algibeira das calças cinzentas.


III.

De que serve tanta teoria

se apenas as preces

e a ousadia

alumiam a gruta nebulosa

da nossa genealogia.


IV. 

Não há coisas ou lugares,

apenas um espelho de água,

espalhando-se e banhando

as margens áridas do tempo a haver;

uma sopa de algas, ácidos e fermentos

conquistando palmo a palmo

a rota improvável de um lobo cego

que nos segue desde a aurora.



23/10/2021

Tempus fugit

 Uma das formas de lidar com a passagem do tempo é emular outra vez a simplicidade da infância.

Afinal tudo é simples para uma criança: a sua consciência cinge-se ao imediato.

Tenho notado que envelhecer é um regresso gradual, mas inevitável,  a esse estado pueril de existência — sem amanhã, nem ontem.

Os mais jovens também não atribuem demasiado valor ao passado, nem ao futuro, optando na maioria por viver o imediato.

Compreendo a sua escolha: a perceção exclusiva do imediato  é o maior dos festins, ainda que a ressaca se torne indigesta, ainda que o passado enquanto repositório de saber pudesse prevenir, prever e explicar muita coisa.

Anfíbio

Nem mar, nem terra
e apesar disso
ambos
frio e quente
como uma praia 
 onde o sangue
leva o sal ao mel

22/10/2021

Sons matinais

Acordas.
Ainda está escuro.

Apenas os sons
te trazem o essencial:
a caricia da água 
caindo na mesma água;
as três primeiras notas
que tocas, em pijama, no piano.

E uma memória retorna
sonora do futuro,
como um epitáfio soletrado
até ao nascer do dia.

16/10/2021

Poemas cinzentos para colorir


Verde e cinzento

Não entendo

como se entendem as cores.

Um coisa é certa:

o outono sabe.



O chapim anuncia

a chuva.

Silêncio.

Quem canta agora:

o céu ou a terra?



Porque ladram os cães

dia e noite?

Temo que sejam poetas

cantando em vão.



Paz outonal:

pedra que ainda pisa

os dissabores da invernia.



O mar

une-se ao cinzento do céu.

As gaivotas sublinham

essas núpcias,

enquanto as ondas terminam

de encontro aos meus pés

submersos

    translúcidos

        temporais



Agora sim: é outono!

Surgem-me os primeiros versos molhados

pelas gotas que caem ao florir.


15/10/2021

Canção para embalar a morte

Castelo de areia
levado pelas ondas
que o mar cuspiu:
muralhas, primeiro 
torre e ameias,
tudo ruiu.

Castelo de areia 
vaga lembrança 
que alguém construiu,
quando era criança 
e não sabia ainda
que o tempo era um rio.

13/10/2021

Águas de outubro

 Qualquer coisa de ouro velho e abstrato invade o ar através do lento vapor desta manhã de outubro. As gotas da chuva miudinha desfazem-se nas folhas dos arbustos mais rasteiros, tornando-as tristes e vivas como seres pensantes, quando se detêm diante de um tom magoado de luz.  Os pássaros prometem-nos que não há pressa. Entre eles nunca houve verdadeiramente. A primavera está outra vez demasiado longe do horizonte e as sementes preparam as suas camas de orvalho nas veias do húmus sobrevivente da última estação quente. O poema — omnipresente, mas impotente — escreve-se no voo curto e débil  das primeiras folhas caídas. Em cima dos lábios, cantilenas sombrias entreabrem  frestas no peito do mais distraído pastor de máquinas.

05/10/2021

Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs

 Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs

são arpejos de chapins refletidos sobre os ribeiros,

camiões em trânsito trazendo e levando a claridade,

anseios ligeiros, quando os tempos são de invernia.


As manhãs conhecem-nos nus e esfomeados.

As manhãs são a esperança das noites,

ou a angústia de quem se percebe vivo outra vez.

Como louvam os pássaros as manhãs,

enquanto se agitam as estradas tão estranhas

ao mar raso e coloquial

que entra sem rumor pela praia de Algés adentro.


 Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs

têm o sabor amargo do café

 que sentimos nos cantos da boca,

quando a fala trôpega sacode o ar ainda frio

que se esgueira pela fresta da janela. 

São um prenúncio das histórias verdadeiramente inventadas.

São o fio da navalha, limite incerto entre a paz e o metro,

o calor e a chuva inesperada, o desejo de um bolo

que não se come há anos.

 Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs.


04/10/2021

De onde vem a História?

 Li algures nas "Viagens da minha terra" de Almeida Garrett que se conhecêssemos as verdadeiras razões históricas todos nos riríamos dos historiadores. Depois desta afirmação, nada mais diz o autor, deixando à imaginação do leitor a verdadeira natureza da história. Por isso, podemos imaginar que a História surja de um problema individual, de um sentimento pessoal, um complexo ou uma situação mal resolvida que transvaza primeiro para uma família, depois para uma aldeia e por fim para um povo. Talvez essa pequena história se replique centenas, milhares de vezes, dando lugar a uma grande mudança civilizacional.

"O último castro antes de Roma"*  é um relato possível deste processo de mudança que vai desde a instabilidade de um individuo até ao mundo inteiro. Se angústia significa falta de esperança, acalentar que qualquer um pode fazer mudar o mundo é um sinal de confiança na humanidade.

*"O último castro antes de Roma" é a próxima produção do Teatro Passagem de Nível a estrear ainda em 2021.

 

 

A poeira

 A poeira dos mortos ergue-se aos céus,
parede traiçoeira turvando o futuro.

Grão a grão,

sobre as cabeças se condensa,

transubstanciando-se numa lama informe.


Depois caí aos pés dos que pela terra erram

num julgamento cíclico

e afinal redentor. 


30/09/2021

O peixe suburbano

 

O peixe espera

coitado.

É o seu trabalho:

esperar concentrado

no canto do aquário.


Aquela esquina

é a sua cidade,

o seu ganha-pão.


Logo que  ali come, 

volta outra vez,

ao buraco suburbano.


Ilustração do poema por Liliana Pereira:








26/09/2021

Curso de escrita teatral - "O subtexto"

As personagens não devem dizer o que pensam. O autor deve aproveitar o que elas pensam e sentem, para obrigá-las a dizer qualquer coisa.

23/09/2021

Dar o peito à cruz

 Às vezes é preciso dar o peito à cruz


A aula

Apenas um turbilhão,

um improviso coletivo,

uma algazarra,

bolas de gritos

colidindo diante do teu disfarce.


Tentas ainda um perfil

cabisbaixo,

uma prece,

a evocação de um bem

que poderia ser comum.


Nada porém intimida

o ferro em brasa  esboroando

a ordem presumida da lição,

a penúltima civilização.



20/09/2021

Loop

1º A vaidade é a ruína de Lear;
2º A crueldade dos Macbeth abre-lhes a sepultura;
3º Iago semeia o ciume na alma de Otelo até ao dia da colheita dos corpos;
4º Bovary entediada gasta tudo em bugigangas;
5º Quijote esquece-se de mudar a pilha ao relógio; 
6º Tio Vânia desilude-se no fim da vida.

6º A vaidade é ruína de  Lear; 
7º E segue por aí adiante, como uma lenga-lenga, o algoritmo da humanidade;
(...)

53 anos

Já nada, nem ninguém muda.

E mesmo que mude,

para mim tudo é infinitamente estático.

A mudança é uma ilusão infantil.

O único movimento real é um caminho

sem retorno para o fim.

Qualquer esperança num amanhã melhor

causar-me-ia mais angústia e sofrimento.

A única prece possível e redentora

tem apenas duas palavras: "É assim".



     Fotografia de Rui Lança (Cronologia do Facebook)

17/09/2021

Histórias da Vida IV - Eusébio e Amália

“Somos os mortos”, escreveu o escritor argentino Jorge Luís Borges, causando-nos uma certa estranheza o podermos ser uma coisa que nem conhecemos bem. 

Falo-vos de Amália e Eusébio, pelos quais nunca me senti representado geracionalmente, confesso. 

Convivi  porém durante décadas da minha existência com a geração que de algum modo os idolatrou. E quando os seus ídolos nos deixaram, senti que também esses entes queridos haviam partido mais uma vez.  

No decorrer dos funerais ou cerimónias fúnebres destas duas figuras maiores do imaginário popular, pressenti a ilusão de um Portugal que partia para que outro chegasse. Foi porém uma sensação momentânea: na realidade, nada fora substituído absolutamente, mas sim misturado, dando lugar a uma nova cultura feita de passado e presente.

Foi pungente ver muitas mulheres a cantar o “Fado Amália” à beira da estrada, enquanto o caixão da fadista percorria as ruas a caminho do Talhão dos Artistas no Alto São João.

Encontrei um vazio imenso e uma unanimidade singular para os meios futebolísticos em redor da câmara ardente de Eusébio junto ao Estádio da Luz.

Ambos eram mais do que fado e futebol: o quê não sei, nem teria a presunção de arriscar nomear o que eles efetivamente representaram. 

Em vida, terão sido instrumentalizados politicamente, como outros agora serão, digo eu. A história repete-se. Nas personagens de Shakespeare cabem todos os nossos familiares e amigos, e nós também obviamente, dando a perceção de que nada do que é profundamente humano muda com o tempo.

Quem escuta a “Estranha Forma de Vida” ou percorre com Eusébio aquele slalom entre os defesas coreanos no Mundial de 66, comovendo-se ou emocionando-se  ainda, guardará, como eu, laços afetivos fortes e constantes aos que os aplaudiram in loco.


16/09/2021

Paciência

Tenham paciência: nada há de melhor

Agora que tenho uma estante para livros

posso enfim entender a paz interior

do poeta morto que aguarda os vivos 


Não gosto de gatos, gosto da Sissi

Nem de pessoas, mas do Raul Brandão 

Não me perguntem se gosto de mim

porque um homem raramente tem razão


Tem razões de um passado que  conspira

que incomoda, sussurrando entre dentes

que se enamora do que só havia antes


E só quando a nau contra a vaga  se vira

e  a paciência  se dissolve  na imensidão,  

a última pétala percebe que floresceu em vão 


27/08/2021

Meu querido mês de agosto: o regresso

Encontramos a cidade ainda meio adormecida. Os estacionamentos parecem bocas desdentadas. Para reiniciar as máquinas, basta carregar no botão. As pessoas têm uma matriz natural: espreguiçam-se, lavam os olhos, bocejam e tomam depois o primeiro café devagar a olhar o infinito interior. A cidade também regressa assim, aos solavancos, como um corpo que deixou os seus órgãos a funcionar apenas para se manter viva enquanto dorme.

Passo em revista as tarefas, as rotinas e os compromissos profissionais. Sinto-me um toureiro que antes da corrida espreita um a um os touros que vai lidar, com um misto de temor e desejo.

A respiração acelera. Recordo ainda o silêncio e as águas de agosto; as caminhadas; os passeios; as praias e os museus; as pessoas que conheci e que não sei se voltarei a ver.

«Parar, começar, parar, começar”, lembra-me o som de uma máquina a vapor. Tem ritmo. Tem vida. Vamos a ela, companheiros.  

Fotografia de Frame Harirak em Unsplash 



26/08/2021

Meu querido mês de agosto: o silêncio

"Preciso deste silêncio", pensei. Porquê este e não outro?

Os silêncios deviam ser todos iguais, mas não são. 

Há o silêncio das trincheiras, precário, sujeito à vontade da artilharia, da nossa ou dos outros. Esse apenas dura o suficiente para recuperar da agitação  que o troar dos canhões far-nos-á de novo sentir; assemelha-se à golfada de ar que o mergulhador vem receber à  superfície antes de voltar a afundar-se nas águas  turvas.

O silêncio da serra é diferente: faz parte dela; é a ausência que torna o restante mais presente. 

Conhecem aquelas pessoas que através do olhar sabemos que falam verdade? Este silêncio é assim também; não sabe enganar; porque nos olha defronte nos olhos e isso basta para nos fazer acreditar nele.

25/08/2021

Sevilla, la venus del bronce

Os europeus sempre foram sensíveis à cultura da Andaluzia. No período romântico e naturalista (século XIX), os pintores registaram as suas  paisagens, os costumes e o folclore da região. Chamou-se a este movimento o Costumbrismo Espanhol. Depois de visitar o Museu de Belas-Artes de Sevilha, não pude deixar de registar no caderninho de bolso esta síntese de lugares-comuns:



Sevilla de los bandoleros, gitanos y brujos encantos. Sevilla caliente con guitarras heridas de lamentos y flamencos, pero también de los santos, curas y catedrales. Sevilla árabe mirando los toros en sus  caballos y burritos ajeados a Andalucía. Sevilla de las descubiertas, pero misteriosa como un patio donde apenas se vislumbra un rincón. Sevilla de lo gazpacho, salmorejo y tapas desde las 5 da tarde a las 11 de la noche. Sevilla de los mendigos, desvalidos y ladrones. Sevilla de la sangue caido en la arena, subiendo hasta la media Luna reflejada en Guadalquivir.

 

Sevilla, otra igual non había, por eso también non habrá otra.






23/08/2021

Meu querido mês de agosto: a água


Entre vales, fomos ao encontro da água que se ajuntava em açudes e pegos debaixo de frondosos carvalhos e amieiros. Descemos depois a serra, atravessámos a planície para nos banharmos no mar.

Em agosto, procuramos a água por instinto. Quando ela nos envolve sentimo-nos purificados, renovados. Talvez  o calor,  que nos estimula esta comunhão, seja apenas uma desculpa sensata para mergulhar. 

A biologia e o mito explicam que viemos da água e somos também água.  Ela representa o sagrado e o essencial para a vida. Os nossos poetas cantam-na: Pedro Homem de Mello escreveu  "Povo que lavas no rio" para Amália cantar depois; Ruy Belo definiu que "Portugal é o que o mar não quer", ou seja aquilo que o oceano nos deixa usar.

Agosto traz um mar que nos leva os escolhos e  lava as nódoas. E assim renascemos sem dar conta. 

Porque não  institucionalizamos o rito de mergulhar como os hindus realizam no Ganges?  Porque se o fizéssemos, assumiríamos uma paixão, uma sujeição. E nós acreditamos  cada vez mais na falácia que  controlamos quase tudo. Eu, por mim, não resisto à água fresca em agosto. 


Fotorafia de Jeremy Bishop em Unsplash

09/08/2021

"Her", um amor virtual

Será que a Inteligência Artificial conseguirá  desenvolver o parceiro/a ideal? 

E quais as suas caraterísticas: absolutamente adaptado ao utilizador ou complementar a este? Parece-me que o maior risco está naquele "absolutamente adaptado" ou que "se vai adaptando" recorrendo a algoritmos adaptativos ou de  aprendizagem. 

Se o "Outro" for feito à nossa medida, deixa de ser o "Outro" e passa a ser "nós próprios". Acaba-se com o "Inferno" de Sartre, segundo o qual "O inferno são os outros", substituindo-se assim o relacionamento interpessoal pelo intra pessoal, onde o nosso ego não terá contraponto.

O filme "Her"/"Ela" está na plataforma de ‘streaming’ "Netflix". Vejam-no se puderdes. 




29/07/2021

Desnível Bar 2 – Apontamentos Suburbanos da Pós-Modernidade

Devido aos quadros do "Desnível Bar 2" serem escritos por três gerações de autores: 1ª - Alice Lança e Borges Lopes; 2ª Domingos Galamba e Luís Palma Gomes; 3ª Beatriz Cazenave e Pedro de Castro pode mapear-se no espetáculo a evolução da pós-modernidade  segunda metade do século XX até agora, onde o consumismo se tornou o sentido da vida; o individualismo causou alienação; a vida  perspetivou-se em curtos espaços de tempo, gerando a precariedade social; a espiritualidade desejou-se leve, digestiva e cómoda; a prioridade do reconhecimento do outro sobrepôs-se à realização pessoal anónima; algumas personagens ambiciosas  procuraram  uma história aparente e glamourosa; um dilema  entre a função e a fruição interpelou-nos; as questões de género e de transgénero perspetivaram-se sobre um novo prisma moral e  ético;  e um desejo de segurança  conduziu ao medo constante, neurótico. 

Todos estes aspetos se concentram-se em quadros específicos ou se dispersam pelos 14 que compõem o espetáculo.

Podem julgar a intenção presunçosa ou demasiado ambiciosa. E que seja. É uma proposta de interpretação de um espetáculo escrito, dirigido e representado por aqueles que convivem ou conviveram com estes fenómenos nas suas vidas. É a vox populi, tal e qual, sem edição, nem filtros.

O "Desnível Bar 2" tem um espaço cénico absurdo, onde o caos se sobrepõe à ordem. Lembra “A sociedade líquida” de Zygmunt Bauman, onde a forma é inconstante, difícil de definir ou circunscrever, o futuro torna-se imprevisível e instável, dado que as moléculas de água não configuram uma estrutura sólida.

 Não será nada de novo insistir que o mundo — para efeito, um bar — não foi feito à medida dos humanos e que nos cabe o ónus da adaptação. Diante desta realidade, o "Desnível Bar 2" convida a um plano de contingência: lançar um sorriso cúmplice, enquanto nos olhamos a nós próprios do outro lado da quarta parede. Eis a análise pessoal à 43ª produção do TPN, encenada por Porfírio Lopes e representada por nobres atores que merecem um forte e veemente aplauso: Rui Ferreira,  Carla Abreu Ferreira, Matilde Cañamero, José "Vespaman",   Joao Cazenave , Sandra Santos, Tânia Catarino, Gonçalo Marques, Ana Simões, António Dias, Luís Tenente, Teresa Tenente, Aldina Nunes.

NOTA SOLTA: O teatro não pode ser mais uma forma de alienação. Aliás a sua subalternização ou auto desfoque contribui para o empobrecimento da capacidade crítica da comunidade.

Cartaz e programa: Marina Palácio

Cenografia: Paulo Oliveira 

Música: Gonçalo Marques



27/07/2021

Templo verde

a rã cala-se

murmura o vento

nas folhas altas


canta a ave

no pico do verão

a rã escuta


o monge reza

à sombra do teixo

templo verde



26/07/2021

O dia da vida

Só há um dia,

quando muito

alguns segundos mais 

tão gratuitos 

como aqueles jornais

prenhos de anúncios 

que nos dão à saída  do metro. 


Só há um dia

para beber a alegria e a angústia

num trago apenas,

ficar a pensar que bom seria

que a vida fosse uma película 

para a podermos ver várias vezes

numa sala de cinema.


Só há um dia, 

uma penugem de ervas esparsas 

onde os pássaros se escondem

um pouco  antes de caírem no céu.

18/07/2021

Os lábios dos sinos

Vêm-me ao pensamento os aflitos. Amanhã serei um deles. Nada mais certo. Entendo-lhes o desespero. Rezo por eles, por mim, à virgem mãe: eterna, humilde, libertadora. 

Os sinos ao longe respondem às  minhas orações. O som vem disperso pelo vento. Apenas ouvidos treinados o podem traduzir.  Não serão os meus que não mereço tal graça, que não nasci com tal dom. 

Ainda assim quase que os entendo como aqueles surdos-mudos que leem as palavras nos lábios dos outros, sussurrando: "Assim será,   assim será".

12/07/2021

O andorinhão

 Do cimo do ninho, o andorinhão espreita a colina que varre a cidade ao encontro do horizonte. A distância entre ele e o chão impressiona-o. Teme levantar voo, o primeiro voo. Cerra os olhos e o perigo desaparece logo. As pálpebras brancas corridas como persianas lembram o olhar de um cego.


O sol abre uma clareira entre as nuvens. O pássaro sente a intensidade da luz e descerra as pálpebras. Tem uns olhos negros, enormes e globulares. São desproporcionais relativamente ao resto da cabeça. Em redor, um bando da sua espécie cruza o ar, emitindo guinchos. Assim de repente, parece que o convidam para a vida. Ele não reage, porém. Há na sua perceção lenta um abismo que ganha forma debaixo dele. O que para nós, humanos, pareceria uma visão aterrorizante, para uma ave que pode voar 11 meses seguidos sem pousar, aquele buraco enorme torna-se um convite para uma possibilidade fantástica.


As patas desta espécie são atrofiadas, devido a pouco serem usadas. Por isso, o juvenil arrasta-se como pode até à borda do ninho; deixa-se cair; abre as suas asas estreitas, mas longas e fortes como um caça de guerra construído em titânio. A vida dele é a partir de agora uma batalha absolutamente aérea.


O abismo que parecia um lugar inóspito, ajuda-o a acelerar o voo. Parece que já voava antes de sair do ovo. Uns metros antes de embater no alcatrão da avenida, inverte o sentido voo em direção ao céu, aceitando a dádiva que lhe foi concedida. Agora sim, voa com uma competência impressionante para uma ave acabada de sair do berço. O céu ganhou um anjo de plumas cinzentas.

08/07/2021

O dia da vida

Só há um dia,
quanto muito
 alguns minutos  mais 
mas tão gratuitos 
como aqueles anúncios 
que nos dão à saída  do metro. 

Só há um dia
para beber a alegria e a angústia
num trago apenas
e ficar a pensar que bom seria
que a vida fosse uma película 
para a vermos repetida 
numa sala de cinema.

Só há um dia, 
uma penugem de ervas dispersas
onde os pássaros se escondem antes de caírem no céu. 



04/07/2021

Quase poemas

(primeiro)

 Já me falta a energia que projeta os vencedores do salto em comprimento, que rompe com a  inércia dos discursos comemorativos quando embalam.

Agora contemplo sempre as mesmas coisas num tédio onde me defendo do tempo que foge.

Ao passear a cadela pelo campo, regresso às manhãs ásperas de outrora, esquecendo-me por momentos da eterna e dulcíssima noite apalavrada.


(segundo)

Não digam a ninguém que andam  por aí a escrever poemas:

"Que perversão", diriam, "Que infâmia" esbanjar assim o tempo sem fritar rissóis ou ajudar os outros corpos a saltar a cerca dos amanhãs  prometidos.

(terceiro)

Na primeira prateleira, encostado aos meus livros de solteiro, tenho um asténico mealheiro, onde as moedas aos cair, fazem sair voando morcegos travestidos de borboletas azuis.

Ajuntando-se junto ao candeeiro, o bando lembra-me o perfil do sábio persa que escreveu o primeiro tratado sobre a música que faz os astros ficarem felizes.

28/06/2021

Previsão

 Do meu livro sei que nem um só poema será lido,

nem desfolharão para além da terceira página.

Lerão sem interesse um verso aqui, outro acolá.

A minha mãe comover-se-á com a obra

sem ler uma linha sequer.

Alguns amigos segredar-me-ão: "Genial!"

por misericórdia.

Os outros poetas pensarão: "Olha-me este".

O meu filho: "Coitado do pai."

A minha mulher confiante comentará 

para ela própria: "Ele lá deve saber porquê."

Eu achar-me-ei um génio incompreendido

e o livro não terá mais que um poiso escondido

numa bolorenta prateleira de um alfarrabista de subúrbio.

17/06/2021

Cuidados

Dizem que os ossos se desfazem,
quando as lágrimas sabem a sal.

Dizem que  sulcos  escavam a face,
quando a lava transborda do coração.

Dizem muita coisa da  ausência
e da infelicidade que o tempo acumula sobre móveis.


Talvez sejam apenas rumores,
 inquietações da fala.

Ainda assim, refugiu-me na ilusão, 
a estação seca dos olhos.

E encosto apenas a porta para que possas entrar 
com um caldo quente que arrefeça sem magoar.

14/06/2021

Um sol enganador

 Olhou para mim e deixou-se lacrimejar. Era um sinal de paixão contida. Gostaria de ter-lhe perguntado o porquê daqueles olhos húmidos, daquele sentimento que crescia no seu íntimo como um rio subterrâneo de onde apenas um fio de água alcança a superfície. Não sabia se estava triste por si, por mim ou por ambos através de uma visão refletida entre as nossas vidas. Revia-se em mim? A minha tristeza ecoava na sua e vice-versa?

Naquela manhã, eu acordara com uma lucidez nascida das sombras. Uma realidade trágica  emergira depois de uma noite mal dormida: a desesperança, as promessas tornadas condições materiais e por isso mesmo transformadas numa espécie de canga que colocamos nos animais para puxar as charruas, a velhice, a impotência que sempre existiu, mas que conseguimos esquecê-la durante grande parte da vida, as mentiras que contamos a nós próprios para viver, para sermos amados, as traições, os ódios, as invejas e tudo o mais com que um ser humano consegue envenenar a graça da vida. Tudo isto se tornou nítido naquela manhã de uma forma exponencial. À minha frente, quem me conhece desde as entranhas lacrimejava em silêncio e de mansinho, como se adivinhasse cada uma das conclusões  que eu havia encontrado naquela manhã de  um sol brilhante, e só por isso, enganador.

13/06/2021

Oração

    Gosto de caminhar por uma charneca existente junto à Estrada dos Salgados na Amadora. É um local ainda impoluto, onde se podem observar muitas espécies animais e vegetais. Por ali vou compondo alguns dos meus poemas nos últimos cinco ou seis anos. Desta vez à medida que encontrava alguma evidência que me sensibilizava, escrevia um destes versos que se iam perfilando em modo de oração. Confesso que os pirilampos são importados de passeios crepusculares, não estando assim em sincronia com o resto do poema. 

    Acredito que o futuro acentuará esta síntese entre a religião e a natureza, ou seja, entre o criador e a obra. Registei também fotograficamente alguns desses momentos que também aqui deixo.


Oração 

Nossa Senhora dos Fenos guia-nos pelos atalhos dos cavalos selvagens.

Nossa Senhora das Borboletas ensina-nos em que flores orar.

Nossa Senhora  dos Pirilampos alumia a noite dos enfermos.

Nossa Senhora dos Ribeiros sacia-nos a sede de infinito.

Nossa Senhora das Formigas ajuda-nos a carregar a culpa e o castigo.

Nossa Senhora das Carriças encaminha-nos  para o ninho.

Nossa Senhora das Trovões explica-nos as nuvens negras do caminho.











24/05/2021

O diário que não escrevi

 Eu amava-a profundamente, ainda que este advérbio de modo não ajudasse a representar o meu sentimento por ela. O meu amor era de uma esfera mais elevada do que aquela onde as palavras significavam ideias convencionais. Por isso, quando ela me pedia para eu dizer-lhe explicitamente que a amava, recusava, evocando argumentos dúbios. Não era possível explicar-lhe a minha teimosia sem falar de magia, de mistério, de coisas apenas intuídas, mas que ainda não tinham para mim uma explicação inteligível. A mais humana das razões era o medo. O medo de nomear o meu sentimento numa camada mais baixa da existência do que aquela onde o meu desejo se havia estabelecido: etéreo, mas vivaz; mental, mas ardente.




23/05/2021

Aviso

 Aos meus filhos disse:

cuidado com os poemas

que queimam as pontas dos dedos

com ácido clorídrico

e desfazem pouco a pouco a traqueia

com o atrito daquelas partículas sintáticas

que ficam a mais nas esquinas dos versos.


Se querem ser poetas, meus filhos,

esqueçam  Kant, esqueçam Séneca

 e outros doutos cânones da razão.

Em vez disso, empreendam  sobretudo

uma melodia doida

saltando de galho em galho

pelo bosque naufrago dos moucos.


Em qualquer café da cidade, dir-vos-ão

que toda a poesia são diapositivos insanos

projetados em paredes rebocadas de lama e ilusão.


18/05/2021

A ruína

No cimo da escarpa avista-se  um castelo em ruínas. Suas torres e muralhas erguem-se agora caquéticas, como dentes espaçados e incompletos.  Ali, abandonado, o antigo bastião é um monumento à solidão. Ninguém lhe presta  já um carinho, uma breve homenagem sequer.  Apenas as cabras e as vacas lhe fazem companhia. Pela sua localização e envergadura, adivinha-se a importância de outrora.  

O castelo viu  partir os inimigos primeiro; os seus soldados com o último alcaide, tempos depois. Queixou-se a quem o ouvisse  da ingratidão  dos que o deixaram, apesar da sua inexpugnável solidez. 

Jamais assumiu  a sua inércia. Em vez disso, deu-lhe para culpar a história, as modas e a traição daqueles a quem dera boa guarida. Esquecera-se afinal  de mudar para continuar a fazer sentido.


Castelo de Peñafiel (Zarza La Mayor) 
Foto Fátima Rodrigues


17/05/2021

A prenda

A caneta que me deste quase secou. Apenas escreve frases incompreensíveis e corruptas.
Quando me a ofereceste, escrevia de forma infinita e luzidia. Se   naquele tempo, a prenda selava a nossa amizade, agora julgo-a apenas uma daquelas cambalhotas que os periquitos fazem nos poleiros ou  uma teia de aranha para apanhar moscas. Infelizmente o tempo ora distorce a nossa percepção, ora a torna mais nítida. O que para o caso pouco importa.


Entre as poucas palavras que  ainda  escreve, todas me lembram que caminhamos  os dois, à semelhança da caneta,  para a inutilidade total.

10/05/2021

Aguaceiro



 
O poeta transforma a realidade através do filtro da sua fantasia. Tudo em seu redor passa a ser um reflexo subjetivo de uma consciência onírica e fugaz. Pelo menos comigo, as coisas passam-se assim. Há um momento de criação que nasce e morre num curto espaço de tempo. Deixa para trás um cadáver ou uma semente: se for o primeiro caso, o poema desfazer-se-á com o tempo; caso contrário, crescerá como uma bela planta que dará cor, perfume ou sombra durante mais algum tempo.

Hoje de repente o céu enegreceu. Em meu redor, tudo tomou um novo sentido. Quem conhece a minha sala, entenderá melhor os elementos deste poema. Quem não conhece ainda, começará pelo fim, ou seja, pela realidade alterada. Depois a chuva começou a cair. Senti que precisava de escrever um poema para me abrigar ou desfrutar  daquele momento. Escrevi assim:

Chove lá fora
e dentro de mim.
O comboio leva e traz 
gente estática.
O peixe aguarda
no silêncio do tanque
uma fresta
que não se abre.
A gata acoita-se;
julga que a chuva 
se zangou com ela.
Recolho-me eu
no alpendre da poesia,
exercício vital
para a flutuação das pedras
em dia de aguaceiros.

03/05/2021

Desesperança

Ó tamanha desesperança do mundo que em mim se fez porto de águas fundas, onde  navios chegam e partem mudos. No cais, sozinho, não espero mais que o fumo pode esperar, quando o vento o dispersa pela praia deserta.

Por lá brande, em meu redor, uma luz crepuscular, lembrando-me o vazio do que para trás ficou e o sofrimento em que se tornou  esta condenação de caminhar.



30/04/2021

Vem como és

Hoje a canção "Come as you are" dos Nirvana faz 30 anos. Passadas três décadas, parece-me algo anacrónico pensar que ainda é vital estimular a consciência da liberdade individual como forma de reforçar a coesão coletiva.   Apesar dos recursos que a Globalização me trouxe, parece-me também  ter-se tornado num mecanismo de uniformização cultural, deixando o individuo demasiado condicionado a uma consciência universal e superficial. No horizonte político, notam-se também algumas nuvens autocráticas e despóticas, perspetivadas agora como um remédio amargo, mas eficaz para as nossas dores. A liberdade tem um preço. Primeiro é preciso encontrá-la num amontoado de liberdades prêt-à-porter - o que não é fácil - e depois ter coragem para pagar o seu preço.

21/04/2021

Águas calmas

 As águas calmas da barragem fazem-nos cair num sono, numa miragem plácida, onde só o sossego parece prevalecer. Nas margens, o cheiro do poejo adoça-nos o palato através do seu odor. Alguns peixes assomam à superfície para caçarem os mosquitos que convivem em voos imprevistos e rasantes. O silêncio quebra-se de vez com o salto da carpa e o destino infeliz do insecto. São as águas calmas e opacas que nos tornam demasiado lentos e confiantes. Deixamos de fazer perguntas, porque ouvimos sempre as mesmas respostas. Não procuramos ver em profundidade. Queremos respostas rápidas, porque não podemos esperar. Preferimos não saber a verdade, ou seja, não nos apercebemos às vezes que a carpa se aproxima sorrateira para nos levar a luz e a liberdade.

Holiday

Íamos de férias para Sul. Estava sem emprego. Tinha-o perdido aos 50 anos, depois de 30 de carreira. Agora discutíamos com vigor e raiva sobre o melhor itinerário para chegar ao local do veraneio.  A discussão da rota era uma metáfora sobre as decisões da minha vida que me tinham levado a esta situação de precariedade. "Escolhes sempre estas estradas péssimas", acusou-me ela. 

Na rádio, como uma epifania, começou a tocar uma balada dos Scorpions, "Holiday": "Let me take you far away/ You'd like a holiday". Fiquei mais calmo. Ela também. Era como se Deus estivesse no banco de trás do carro a sintonizar o posto da rádio. Tudo havia de melhorar e melhorou de facto.



18/04/2021

À espera dos bárbaros

Enquanto os bárbaros não chegam, procuro o próximo brinquedo. Está demasiado calor para qualquer fantasia mais agitada do que o sono leve das manhãs de domingo. 

Aguardo o fuso horário do destino, com a mesma placidez de quem se senta à janela e espera a passagem de um cometa que se atrasou no caos sideral.

Olho a rua, as flores, os telhados defronte. Daquilo que partiu não consigo distinguir mais do que uma cadeia finita de longínquas imagens, recortes de uma revista velha que guardei na gaveta da cómoda por debaixo das meias.

No fundo da rua, pareceu-me ver  Jesus caminhando na minha direção. Seria uma alucinação? Que assim seja.

Enquanto os bárbaros não chegam, terei tempo para me barbear e procurar de novo os ninhos dos abelharucos. Quero entregar-me aos invasores com dignidade e com aquela esperança  instintiva que nos leva a fazer uma sopa apenas para a semana inteira.

15/04/2021

O Jantar da Raposa

 Uma aldeia é uma fábula de La Fontaine. A vida dos humanos e dos animais cruza-se com frequência.  Porque tudo ali é lento e previsível, vamos conhecendo os hábitos dos bichos — os seus trilhos, as suas manias. Depois das refeições guardávamos os restos de carne para entregar às raposas que rodeiam a aldeia. Durante uma semana, tentámos adivinhar os locais onde podíamos entregar-lhes o jantar. Nunca as vimos, porém. 

Mais tarde, um hortelão simpático informou-nos o lugar onde elas viviam. Lá fomos, nós com salsichas e entremeadas  matar a fome à família das raposinhas. Não encontrámos nenhuma. Deixámos lá o manjar e regressámos desiludidos. Já passava da meia da noite, quando decidimos lá voltar.  Qual não foi a nossa surpresa, quando, no improvisado comedor,  uma raposa abocanhava uma das salsichas. Valeu a persistência para vê-las e alimentá-las. Interpretei este sinal, como se o espírito da aldeia nos dissesse: "Nunca desistam de bem-querer.".



12/04/2021

Reflexão: as caminhadas na aldeia

Saímos cedo para a caminhada em redor da aldeia. E logo nos assaltam os aromas, os sabores, a rugosidade das pedras. Cheiramos a hortelã e o poejo, comemos figos e amoras, tateamos o musgo sobre as rochas. Quando o sinal de rede enfraquece,  os sentidos da proximidade ganham vitalidade: o olfato, o paladar e o tato.  Já não há momentos isolados, apenas um mergulho caminhado, um ato continuo, completo e autêntico. Sem intermediação, a natureza  torna-se imersiva e cheia daqueles detalhes que ganham um novo sentido quando se juntam. Por ali, não encontramos vestígios de inocência, mas apenas uma essência modesta, que apenas se revela até ao limite necessário para viver.



Foto de Fátima Rodrigues

09/04/2021

A morte do caixeiro viajante

Sempre que lá vou otimista

dizem-me que não chega ainda,

que a manhã já partiu

e a próxima só chega depois de mim.


"Foi por pouco", dizem-me,

"Tente de novo".


O sol já se abaixou demais.

Colhi e atei os raios que pude.

Guardei-os numa gaveta empenada de madeira.

Perguntei à minha mãe velhinha,

se  arrefeceriam eles?


Pelo olhar dela,

compreendi afinal para que serve a vida.

04/04/2021

Tempus fugit

 Idas as naturais sensações,

restavam-nos as palavras.

Apenas através delas acreditávamos,

mesmo sabendo-as impossíveis.


Para as pronunciar outra vez,

era preciso regressar

ao tempo que fugira

até um lugar irrepetível.


Nós não podíamos ir lá atrás.

Agora éramos dois grandes pinheiros

enraizados sobre a praia.



03/04/2021

A presença na ausência

 

Era Sexta-Feira Santa. Chegámos atrasados à missa. Devido aos constrangimentos da Covid-19, fomos desviados para o coro alto de onde tínhamos de assistir à missa. Subindo as escadas da igreja que davam acesso à varanda interior, fomos recebidos por um intransponível senhor de cabeça rapada. Tinha um metro e noventa e uma indumentária franciscana que deixava relevar um forte ascetismo e provavelmente uma ligação continuada aos mandamentos de humildade. Possuía uma cara séria e uma voz quase sussurrada que servia de contraponto com a sua massa muscular.  Segredava as ordens, devido ao espaço e ao início iminente da missa mais importante do ano litúrgico. Encaminhava as pessoas para os lugares previamente marcados com bolas brancas, fazendo gestos de polícia sinaleiro. Colocou-me na primeira fila. Ao sentar-me apercebi-me que não conseguia ver o altar, mas apenas Jesus na cruz que o sobrepunha. Tentei pedir ao arrumador para subir para uma fila mais alta. O pedido foi recusado com um “não” seco e um olhar desaprovador. “Não vejo nada daqui.”, justifiquei. “Não e não. Sente-se”, ordenou de novo. Sem argumentos, sentei-me. A minha mulher que ocupava um lugar numa fila mais alta, chamou-me para junto dela. Olhei de novo o arrumador e disse-lhe a ela que não podia. Ela insistiu. Eu resignado e frustrado virei-me para a frente firme, subjugado ao dever de cumprir as normas de segurança: tinha de aceitar a minha situação. Aceitar e compreender eram as únicas  atitudes capazes de lidar com a insatisfação. 

O padre e os acólitos entraram. A eucaristia ia começar. Levantei-me. Quando o padre Carlos começou a falar, conclui que devido a reverberação do som, não conseguia entender quase nada do que se dizia no altar e do coro. Apenas me chegavam algumas palavras e sons que pareciam por vezes desafinados. Um homem baixo que fora colocado ao meu lado, virou-se para mim e lamentou-se: “Não se consegue ver nada.”.  Na sua constatação, havia também um pedido de velado de insubordinação como se tivesse a aliciar-me para a formação de um movimento cívico que destituísse o arrumador ou outra ação semelhante capaz de nos fazer ver e ouvir a missa. Olhei para ele e encolhi os ombros. Tentei com o meu gesto, convencê-lo à resignação. As leituras, os cânticos, as liturgias seguiam sem freios e eu nada percebia e nada via, para além de algumas palavras soltas: “liberdade”, “Papa Francisco”, entre poucas outras. Aquele tempo privação, pôs-me a pensar em metáforas hipotéticas: o que significava a determinação do arrumador, a minha aceitação daquele lugar apesar das solicitações?  O que significaria  a incompreensão do que era dito ou feito lá em baixo no altar? Conclui que a aceitação é uma premissa religiosa; que por mais douto que me ache nas coisas de Deus, estou sempre muito aquém de um entendimento pleno dos mistérios e dos desígnios que atravessam os dois mil anos que me distanciam de Cristo e do momento da sua consagração. Mais uma vez estava a fazer a mesma pergunta que me seguia há semanas: o que podemos verdadeiramente conhecer? 

Fechei os olhos.  Estava agora a decifrar uma mensagem que seria impercetível se estivesse atento à mensagem de um emissor humano. As vozes continuavam incompreensíveis. O coro, os acordes do órgão pareciam agora bastante desarmónicos e desafinados. Aquela impressão e a altura em que me encontrava face ao lugar dos acontecimentos que decorriam lá em baixo fizeram-me colocar a possibilidade de também Deus não os entender. Mesmo que os entendesse vagamente, podia não se sensibilizar com as palavras cantadas à superfície da Terra. Assim, nem nós entenderíamos a palavra de Deus, nem  Ele a nós, levando-O a desprezar os nossos rogos, a não se emocionar com a tentativa daqueles que tentavam em vão evocar a beleza que Ele lhes inspirava. Na maior parte do tempo, não haveria ligação alguma entre os crentes e o criador: não entendíamos nós a sua palavra, ou aquela que a humanidade por via dos evangelistas, teólogos ou sacerdotes afirmava sê-la.

Fiquei a pensar que naquela missa, da qual nada  vi nem ouvi, a voz do Senhor revelou-me exatamente a importância  da sua ausência. O seu silêncio era a prova da sua existência. Porque em intensidade e momentos diferentes, todos temos saudades de Deus. E só temos saudades do que já tivemos.

Havia, contudo, uma esperança: no domingo de Páscoa, ele renasceria. E um cristão não pode perder a esperança. 

29/03/2021

Amor distante

 Às vezes,

num certo instante,

num verso perdido,

num poema esquecido

 no bolso das calças

encontro sem querer

o amor distante.


Meto a mão no queixo

e penso depois o quanto 

há nesta ideia de redundante, 

porque a distância e o amor  são causa e efeito,

e haverá uma ordem e haverá um proveito.


Mas que importância terá a ciência disto,

nos versos que Luiz  fez a Violante?


28/03/2021

Os três tipos de portugueses, segundo Fernando Pessoa

 Segundo o que Pessoa escreveu num ensaio chamado "Sobre o homem", há três tipos de portugueses:

O primeiro tipo de português apenas existe por existir e só por isso Portugal existe. Trabalha e vive de forma obscura e modesta; engrossou, qual iniciático inocente, as fileiras de infantes de Aljubarrota, acreditou que La Lys era o contra-ataque de Alcácer Quibir. É um homem que se irrita com a verdade, porque sabe que ela não existe, para além da ciência que ele não entende. Por isso, aguarda que uma mentira credível — ou simplesmente uma fantasia alternativa ao tédio em que caiu — o emocione e o faça agir. Porém ele apenas o fará quando todos os outros o fizerem. Porque este português que são muitos é só um apenas. É na sua génese um indivíduo coletivo que faz de conta que não sabe que a política é  uma mentira que nos projeta para um lugar diferente.   


O segundo tipo de português é o que não é português: começou com uma invasão mental por vontade do Marquês de Pombal. Quando viu que afinal estava enganado, fez aquilo a que se chama uma fuga para a frente com o constitucionalismo. Perdeu a razão com toda a euforia que a demência nos remete com a república. Está completamente divorciado do país que governa ou julga governar. É por sua vontade, parisiense, nova-iorquino, prussiano, bolchevique. E contra sua vontade é estúpido.


Por último há um terceiro que nasceu no reinado de Dom Dinis, momentos em que o império se esboçou. Foi-se embora para Alcácer Quibir onde morreu. Contudo, deixou parentes que continuam à sua espera. Esperam-no a ele, sabendo que com ele virá el-Rei Dom Sebastião, o verdadeiro último rei de Portugal.


Bibliografia: "Mensagem e outros poemas afins" de Fernando Pessoa - Ed. Europa América

21/03/2021

Conhecer

O que posso eu conhecer? Como? E o quê? 

Para além dos limites cognitivos impostos pelas dimensões do tempo e do espaço, as minhas emoções  condicionam-me  também o entendimento. 

Se uma sinapse da rede neuronal  é ativada quando uma determinada carga elétrica a estimula, poderá o mesmo acontecer com o nosso grau de entendimento das coisas: a paixão ilumina-nos os mais crípticos  poemas da amor, a doença explica-nos a fragilidade humana e por esta via os caminhos da metafísica e do transcendente. 

Conhecer não está assim ao arbítrio absoluto do sujeito, mas também das suas circunstâncias. O primeiro passo é  de facto arbitrário e começa pelas perguntas : estou preparado para conhecer? encontro-me em condições  para conhecer? Estas premissas são definidas por: primeiro, uma atitude interior que permita aceitar o conhecimento sem baias; segundo, ter a certeza  que me é dado a conhecer a coisa na sua forma mais nítida, sendo esta claridade fruto da razão ou da experiência.

A tomada de consciência das circunstâncias mais imediatas ou próximas aumentará  a possibilidade para conhecer. Este novo conhecimento permitirá dar resposta imediata sobre o que é a minha realidade, porque o "eu" apenas o é num determinado espaço e tempo. Assim — e partindo desta primeira camada de conhecimento —    podemos progredir para  perguntas mais universais e cujo a grandeza  ultrapassa os limites possíveis  da nossa intimidade com as mesmas.


"Meditações sobre Quixote" - José Ortega y Gasset
"O que é a filosofia?" - podcast sobre  Immanuel Kant de António de Castro Caeiro

18/03/2021

Os anciões da Cinemateca

Três da tarde. Sala de espera da Cinemateca. Alguns idosos aguardam a sessão. Entreolham-se o mínimo possível. O que haveriam de dizer uns aos outros: banalidades, lugares comuns, tristezas sinceras ou falsas alegrias. Esperam que o filme comece. Na tela, ainda haverá  esperança: um início outra vez, um amor pungente, um final inesperado ou mítico, se o filme for daqueles que se tornara um clássico. Sento-me entre eles, como se estivesse entre grandes gatos: quietos, sonolentos, atentos apenas ao que realmente é diferente, ou seja, quase nada. Já viram a vida toda, os filmes preferidos várias vezes. 

Nunca tentei abordar nenhum deles. Quem ousaria roubar a palavra de um totem, de um altar? Ouve-se um trecho musical, anunciando que o filme vai começar. Parecem sinos chamando os fiéis. Levantam-se dos ruços e consoladores sofás. Dirigem-se para os lugares habituais na plateia ou no balcão. Todos devem ter uma tese sólida para aquela escolha e dedicação a um lugar, a uma zona da sala. O filme começa. Agora apenas contemplam, como folhas de árvore viradas para o Sol, ou como aqueles  grandes afloramentos de granito que rasgam as planícies da Beira. Tenho a certeza que muitos deles pensam ou murmuram mesmo entre dentes:  "Projecionista, o filme nosso de cada dia nos dai hoje ".




14/03/2021

A gata comeu o Sol


Queria o Sol e a gata comeu-o.

Agora ando assim assim, tateando os móveis, desviando-me das formas esquinadas, vendo apenas o que a luz da Lua me deixa ver.

 Têm razão os soturnos, quando dizem que a penumbra tenuemente iluminada exagera os perfumes, os uivos, os passos, o ranger dos materiais,  transfigurando as coisas banais em visões fantásticas. 

Tenho saudades do Sol, mas confesso que aquela luz era demais. Cegava-me com excesso de coisas reais.

 A gata comeu o Sol. São muito inteligentes os animais.

13/03/2021

Metafísica: um caso de estudo

  A tarde era de março, solarenga e chuvosa. Talvez porque a instabilidade dos elementos instigava à ação - ainda que esta pudesse ser apenas pequena e moderada – fugi dos caminhos alcatroados do jardim, desviando-me por um atalho pisado entre ervas que me levaram a uma ribeira. Devido às chuvas, a corrente pulsava nervosa e alegre entre as pedras que pontuavam um caminho entre as margens. Veio-me a vontade de atravessar ali mesmo. Tracei mentalmente uma rota possível pedra a pedra e lancei-me à empreitada. Já os pés saltitavam pelas primeiras pedras, quando me senti desequilibrado e hesitante sobre qual a pedra onde deveria pousar a próxima passada. A água trepava agora lentamente pelos ténis acima. Vislumbrei ao meu lado um caniço que se sobrepunha horizontal à ribeira. Era tão enfezado e quebradiço que tinha como única função servir de poleiro às toutinegras que caçavam mosquitos por ali. Ainda assim, com a mão direita agarrei-me a ele. Com surpresa, notei que aquele corpo estreito e frágil deu-me uma confiança inesperada. Senti-me seguro outra vez e sem mais delongas segui pedra a pedra até à outra margem sempre com o caniço dentro da mão.

Quando lá cheguei, perguntei-me: se não foi a solidez do caniço que me garantiu a estabilidade durante a travessia, o que foi? Tinha sido algo de imaterial, um sentimento, uma aliança entre as forças invisíveis que me habitavam e rodeavam. Creio que é a isto que os filósofos chamam de metafísica.    

12/03/2021

Mais um poema (Versão XL)

 Ao professor António Castro Caeiro


É só mais um poema.
Há tantos que não pode haver tantos que o sejam.
Então o que é? De onde chegam? 
Qual a natureza desta embriaguez lúcida que me toma?

Onde mora o centro fértil desta harmonia?
Fora ou dentro?
Será um  coito ou uma afirmação desabrigada da loucura? 

Os pássaros respondem a todas estas perguntas. 
Não os entendo, porém.
Talvez seja isso mesmo um poema, 
uma tentativa mais para entender a fala dos anjos 
ou dialeto interior dos pássaros que fomos ou seremos, 
porque o presente não existe.
É um tempo demasiado puro e escasso
para a imperfeição dos sentidos.

Onde ia eu? Ah, sim, o poema...

Dizia então que o poema não é o que parece ser,
porque nunca havemos de chegar à essência  das coisas.
É o que a ciência dos computadores chama de firewall humana.

Mais um poema

É só mais um poema.

Há tantos que não pode haver tantos que o sejam.
Então o que é? De onde chegam? 
Qual a natureza desta embriaguez lúcida que me toma?

Onde mora o centro fértil dessa harmonia?
Fora ou dentro?
Será um  coito ou uma afirmação desabrigada da loucura? 

Os pássaros respondem a todas estas perguntas. 
Não os entendo, porém. 
Talvez seja isso um poema, 
a simples expressão de um desentendimento.