Era Sexta-Feira Santa. Chegámos atrasados à missa. Devido aos constrangimentos da Covid-19, fomos desviados para o coro alto de onde tínhamos de assistir à missa. Subindo as escadas da igreja que davam acesso à varanda interior, fomos recebidos por um intransponível senhor de cabeça rapada. Tinha um metro e noventa e uma indumentária franciscana que deixava relevar um forte ascetismo e provavelmente uma ligação continuada aos mandamentos de humildade. Possuía uma cara séria e uma voz quase sussurrada que servia de contraponto com a sua massa muscular. Segredava as ordens, devido ao espaço e ao início iminente da missa mais importante do ano litúrgico. Encaminhava as pessoas para os lugares previamente marcados com bolas brancas, fazendo gestos de polícia sinaleiro. Colocou-me na primeira fila. Ao sentar-me apercebi-me que não conseguia ver o altar, mas apenas Jesus na cruz que o sobrepunha. Tentei pedir ao arrumador para subir para uma fila mais alta. O pedido foi recusado com um “não” seco e um olhar desaprovador. “Não vejo nada daqui.”, justifiquei. “Não e não. Sente-se”, ordenou de novo. Sem argumentos, sentei-me. A minha mulher que ocupava um lugar numa fila mais alta, chamou-me para junto dela. Olhei de novo o arrumador e disse-lhe a ela que não podia. Ela insistiu. Eu resignado e frustrado virei-me para a frente firme, subjugado ao dever de cumprir as normas de segurança: tinha de aceitar a minha situação. Aceitar e compreender eram as únicas atitudes capazes de lidar com a insatisfação.
O padre e os acólitos entraram. A eucaristia ia começar. Levantei-me. Quando o padre Carlos começou a falar, conclui que devido a reverberação do som, não conseguia entender quase nada do que se dizia no altar e do coro. Apenas me chegavam algumas palavras e sons que pareciam por vezes desafinados. Um homem baixo que fora colocado ao meu lado, virou-se para mim e lamentou-se: “Não se consegue ver nada.”. Na sua constatação, havia também um pedido de velado de insubordinação como se tivesse a aliciar-me para a formação de um movimento cívico que destituísse o arrumador ou outra ação semelhante capaz de nos fazer ver e ouvir a missa. Olhei para ele e encolhi os ombros. Tentei com o meu gesto, convencê-lo à resignação. As leituras, os cânticos, as liturgias seguiam sem freios e eu nada percebia e nada via, para além de algumas palavras soltas: “liberdade”, “Papa Francisco”, entre poucas outras. Aquele tempo privação, pôs-me a pensar em metáforas hipotéticas: o que significava a determinação do arrumador, a minha aceitação daquele lugar apesar das solicitações? O que significaria a incompreensão do que era dito ou feito lá em baixo no altar? Conclui que a aceitação é uma premissa religiosa; que por mais douto que me ache nas coisas de Deus, estou sempre muito aquém de um entendimento pleno dos mistérios e dos desígnios que atravessam os dois mil anos que me distanciam de Cristo e do momento da sua consagração. Mais uma vez estava a fazer a mesma pergunta que me seguia há semanas: o que podemos verdadeiramente conhecer?
Fechei os olhos. Estava agora a decifrar uma mensagem que seria impercetível se estivesse atento à mensagem de um
emissor humano. As vozes continuavam incompreensíveis. O coro, os acordes do órgão
pareciam agora bastante desarmónicos e desafinados. Aquela impressão e a altura em
que me encontrava face ao lugar dos acontecimentos que decorriam lá em baixo
fizeram-me colocar a possibilidade de também Deus não os entender. Mesmo que os entendesse vagamente, podia não se
sensibilizar com as palavras cantadas à superfície da Terra. Assim, nem nós entenderíamos a palavra de Deus, nem Ele a nós, levando-O a desprezar os nossos rogos, a não se emocionar com a tentativa
daqueles que tentavam em vão evocar a beleza que Ele lhes inspirava. Na maior parte do tempo, não haveria ligação alguma entre os crentes e o criador: não entendíamos nós a
sua palavra, ou aquela que a humanidade por via dos evangelistas, teólogos ou sacerdotes afirmava
sê-la.
Fiquei a pensar que naquela missa, da qual nada vi nem ouvi, a voz
do Senhor revelou-me exatamente a importância da sua ausência. O seu silêncio era a prova da sua existência. Porque em intensidade e momentos diferentes, todos temos saudades de Deus. E só temos saudades do que já tivemos.
Havia, contudo, uma esperança: no domingo de Páscoa, ele renasceria. E um cristão não pode perder a esperança.
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