Eu amava-a profundamente, ainda que este advérbio de modo não ajudasse a representar o meu sentimento por ela. O meu amor era de uma esfera mais elevada do que aquela onde as palavras significavam ideias convencionais. Por isso, quando ela me pedia para eu dizer-lhe explicitamente que a amava, recusava, evocando argumentos dúbios. Não era possível explicar-lhe a minha teimosia sem falar de magia, de mistério, de coisas apenas intuídas, mas que ainda não tinham para mim uma explicação inteligível. A mais humana das razões era o medo. O medo de nomear o meu sentimento numa camada mais baixa da existência do que aquela onde o meu desejo se havia estabelecido: etéreo, mas vivaz; mental, mas ardente.
24/05/2021
23/05/2021
Aviso
Aos meus filhos disse:
cuidado com os poemas
que queimam as pontas dos dedos
com ácido clorídrico
e desfazem pouco a pouco a traqueia
com o atrito daquelas partículas sintáticas
que ficam a mais nas esquinas dos versos.
Se querem ser poetas, meus filhos,
esqueçam Kant, esqueçam Séneca
e outros doutos cânones da razão.
Em vez disso, empreendam sobretudo
uma melodia doida
saltando de galho em galho
pelo bosque naufrago dos moucos.
Em qualquer café da cidade, dir-vos-ão
que toda a poesia são diapositivos insanos
projetados em paredes rebocadas de lama e ilusão.
18/05/2021
A ruína
No cimo da escarpa avista-se um castelo em ruínas. Suas torres e muralhas erguem-se agora caquéticas, como dentes espaçados e incompletos. Ali, abandonado, o antigo bastião é um monumento à solidão. Ninguém lhe presta já um carinho, uma breve homenagem sequer. Apenas as cabras e as vacas lhe fazem companhia. Pela sua localização e envergadura, adivinha-se a importância de outrora.
O castelo viu partir os inimigos primeiro; os seus soldados com o último alcaide, tempos depois. Queixou-se a quem o ouvisse da ingratidão dos que o deixaram, apesar da sua inexpugnável solidez.
Jamais assumiu a sua inércia. Em vez disso, deu-lhe para culpar a história, as modas e a traição daqueles a quem dera boa guarida. Esquecera-se afinal de mudar para continuar a fazer sentido.
Castelo de Peñafiel (Zarza La Mayor) Foto Fátima Rodrigues |
17/05/2021
A prenda
10/05/2021
Aguaceiro
03/05/2021
Desesperança
Ó tamanha desesperança do mundo que em mim se fez porto de águas fundas, onde navios chegam e partem mudos. No cais, sozinho, não espero mais que o fumo pode esperar, quando o vento o dispersa pela praia deserta.
Por lá brande, em meu redor, uma luz crepuscular, lembrando-me o vazio do que para trás ficou e o sofrimento em que se tornou esta condenação de caminhar.