23/02/2014

Poema #2

A tua presença
é a parte do silêncio que pode ser dito,
é a leve interrupção da ausência,
o bater de asas de um colibri
ou a ínfima poeira celestial
pousada rente à película do olho.



A mais leve inquietação

A inquietude das formas
lembrando-nos que o rio que passa
é um peixe que quer ser ave,
é uma ave que quer ser vento,
é o vento que quer ser a vela do moinho
rodando em círculos e mais círculos
como se fosse um ritual de pão.

E de súbito,
tudo se sustém,
tudo aguarda, quieto,
a fotografia de um anjo
que passa apenas passando
e ao passar nos deixa
a sensação estranha de não haver nomes,
nem tempo, nem sequer o sol
(esse supremo grão de areia,
seguro entre os dedos de outras estrelas)
mas apenas um resto de brisa
saído de um desfolhar  de pétalas.

18/02/2014

"Encontros imaginários" na Amadora

Os primeiros "Encontros Imaginários na Amadora" decorrerem ontem (17 de fevereiro) na Biblioteca Fernando Piteira Santos. Este evento cultural resulta de uma parceria entre aAssociação Amadora Ppf e o Teatro Passagem de Nível. A sala estava cheia e entre ospresentes estavam o autor, Hélder Costa, e o desenhador amadorense José Ruy.

Neste encontro, estiveram sentados sobre a coordenação de Jacinto Furtado, o cauteloso Professor Salazar, o corajoso Humberto Delgado e a infeliz Soror Mariana. E foi uma conversa muito elucidativa e com momentos hilariantes.

Atores: António Oliveira Salazar ( Porfíriio Lopes), Soror Mariana Alcoforado (Matilde Cañamero), Humberto Delgado (João Moreira) e o entrevistador(Jacinto Furtado)

Próximo encontro, decorrerá no mesmo espaço, no próximo dia 17 de Março com Jesus Cristo, Goebbels e Mao-Tse-Tung.

Marque já na sua agenda!







16/02/2014

Realidade Touchscreen

O carro parou no semáforo. A paisagem lá fora era a habitual.  A criança dentro do automóvel varreu, com o dedo indicador,  o vidro lateral do veículo para que este avançasse.  Era assim que mudava as imagens no tablet do pai. Era daquela forma que o presente se tornava passado. Por  coincidência, ou talvez não,  o sinal ficou verde e o automóvel avançou para o nivel seguinte daquele jogo mais monótono do que aqueles que ele jogava no tablet do pai.

13/02/2014

O amor é um filho da puta

Há linhas que se quebram, triângulos de vários ângulos que se criam, vértices que não se tocam, linhas paralelas ou então concorrentes, mas que apenas se cruzam tarde de mais. Esta é a geometria do amor. Os corpos não se fundem, os olhos não se tornam unos e os corpos tocam-se por instantes demasiado curtos quando vistos de longe, da eternidade. O amor tem ainda um  lado animal, instintivo e cínico que apela apenas à sobrevivência dos espécimes.

É fácil falar de amor quando não estamos apaixonados, quando não fomos abandonados no caminho. Caso contrário, também falamos, escrevemos, cantamos, mas ficamos a sós com as nossas palavras e os nossos vazios temporiamente por preencher. Nestes espaços, ecoam vozes e raivas e silêncios onde soam...sei lá...violencelos ou campainhas incómodas . Mas tu vais  levantar-te, camarada. Levantamos-nos sempre e caminhamos discretamente diante do olho semiaberto da fera que descansa e nos vigia.

Falar de amor é uma seca, um aborrecido lugar comum. O amor é um filme que já conhecemos o fim ou um jogo de futebol em diferido do qual  já sabemos que o nosso clube perdeu.  O amor conquista tudo, todos espaços e segundos. Quando ele parte com o seu espólio de ouro e prata, pouco nos resta. Ficamos entregues a uma nova e estranha solidão. E é preciso (re)amar-nos de novo para suportarmos essa senhora tão intima e imprevista como uma sombra.





12/02/2014

A mulher-vértice

Este fotógrafo chama-se Alfredo Cunha. É fotojornalista e destacou-se pelo seu trabalho no dia 25 de abril de 1974. Atualmente vive em Fafe. Gosto muito do seu trabalho - um pouco na esfera de Sebastião Salgado.

Deixo aqui uma foto dele. Chamei-lhe "A mulher-vértice".


Foto de Alfredo Cunha

Sylvia Plath morreu há 51 anos

Fez ontem 51 anos que faleceu a mais triste poetisa do mundo. Um minuto de poesia por ela:

The present is forever, and forever is always shifting, flowing, melting. This second is life. And when it is gone it is dead.
Sylvia Plath (outubro 27, 1932 – fevereiro 11, 1963) in The Unabridged Journals of Sylvia Plath

Tradução: "O presente é para sempre, e para sempre continua  mudando, fluindo, derretendo. Este segundo é a vida. E quando ele se foi, fica morto." 


08/02/2014

Poema #1

Sou a doença e sou onde me dói.
Sou  o que compra a bala do seu fuzilamento.
E entra pela noite adentro
jurando ver o sol a raiar.
Sou o que em tudo o que disse, nada disse,
julgando ser ouvido
do fundo de um poço sem boca,
como uma nascente que nasceu seca,
como um floco de neve que se liquefez no ar
e quando chegou à terra já era água suja.
Sou aquele que  se nega ao afirmar.
O que nasceu para aquilo,
mas apenas fez isto.
Sou filho de Maria e José,
mas quando nasci,
já todos haviam esquecido Jesus verdadeiramente.

04/02/2014

Para que serve a arte ?

"Arte persuade-nos a afastar da mecânica, para nos aproximarmos do milagre. A chamada inutilidade da arte capacita-a  do seu poder transformador. A arte não é parte da máquina. Ela pede-nos para pensar de forma diferente, ver de maneira diferente, ouvir de forma diferente e, finalmente, a agir de forma diferente – onde reside afinal a força moral. Ruskin estava certo, embora pelas razões erradas, quando ele falou sobre a arte como uma força moral. A arte não é o  bom comportamento -Quando foi a última vez  que viu um milagre  comportar-se bem? A arte torna-nos pessoas melhores, porque eleva-nos no sentido da nossa plena humanidade, e a humanidade é, ou deveria ser, o oposto polar do meramente mecânico. Nós não fazemos parte da máquina, mas nos esquecemos disso. A arte é a memória - o que é bem diferente de história. A arte pede que nos lembremos de quem somos, e, geralmente essa pergunta surge como uma provocação - é por isso que ela quebra as regras e os tabus, e ao mesmo tempo é uma força moral."

                                    De Jeanette Winterson || Tradução livre de Luís Palma Gomes 

A escritora Jeanette Winterson



03/02/2014

Quietude e movimento

"The Lost Jockey",  de René Magritte em 1948

João Lagarto trouxe o Beckett ao Auditório de Alfornelos



Este fim-de-semana tive o privilégio de assistir ao espetáculo “Começar a acabar” de Samuel  Beckett numa leitura/compilação de vários extratos de peças do dramaturgo irlandês. A autoria do espetáculo é de João Lagarto que com este espetáculo alcançou um globo de ouro para a melhor interpretação em 2006. O homem de teatro – prefiro chamar-lhe assim – João lagarto efetuou ainda, no dia seguinte,  uma palestra dedicada ao making-off do espetáculo, com enquadramento biográfico e artístico, aberto a todos.

A minha avaliação não podia ser a melhor. O monólogo com o qual foram presenteados os espetadores que se deslocaram ao Auditório de Alfornelos – a casa do Teatro Passagem de Nível – foi de uma qualidade extrema, ora ao nível da interpretação, ora ao nível da coletânea de textos apresentados. O ator pouco se movimenta, cumprindo o minimalismo Beckettiano, mas quando faz cria espaços dramatúrgicos e significados fortes. O estudo e investigação que João Lagarto efetuou para a construção deste espetáculo é a prova que o trabalho compensa.  A sua interpretação é muito boa – diria quiçá o papel da sua vida ou do fim de vida para qualquer mortal.

A peça versa os últimos dia de vida de um mendigo típico das ruas Dublin, que durante hora e meia efetua o seu “relatório e  contas” com a vida. A personagem precisa finalmente de alguém para comunicar e fá-lo com o público de uma forma forte e convincente. Mais tarde, na sua palestra de domingo, João Lagarto explica-nos esta abordagem pós-modernista onde o público faz como nunca parte da obra. Ou seja a sua interpretação complementa a visão do autor, como nos processos de abstração.


Enfim em nome de todos que gostam de teatro, quero agradecer ao João Lagarto e ao Teatro Passagem de Nível este momento que me tornou mais rico e esclarecido.