30/04/2022

Eulogia da Sissi

 Não esperava uma dor tão profunda. «Afinal és apenas um animal», tentava eu convencer-me antes de partires. Mas agora tenho a certeza que eras um membro da família, que nos davas conforto e companhia. E também um exemplo de como aproveitar algumas graças do mundo, desfrutando o sol, contemplando a azáfama que passava do outro lado da janela.

Às vezes pensava que serias mais feliz, se tivesses  filhos, maridos e de lutar pela sobrevivência. Porém, todas as manhãs, antes de sair de casa, olhava-te deitada ao sol, e a tua serenidade fazia-me acreditar que te sentias  remediada, nessa  tua vida de monja dos pequenos prazeres.

Tiveste sorte, gatinha, porque vieste encontrar uma casa agraciada pelo astro-rei. Os primeiros raios vinham ter contigo à janela do quarto. Havia já um ritual: preparávamos-te a cadeira, onde te banhavas, num silêncio morno e contemplativo, naquelas ondas de luz. 

Se o lugar, entretanto, aquecia em demasia, temperavas o corpo franzino, mas longo, estirando-te na sombra quente aos pés da cama.

Da parte da tarde, o sol rodava até à janela do outro quarto. E tu, como um ponteiro de relógio, acompanhava-lo nesse poiso, até que ele se pusesse por detrás do horizonte onde adivinhamos apenas o mar.

Agora, depois de 15 anos de vida, partiste para o céu dos gatos, onde, felizmente, o sol e o paté fresco não acabam nunca. 

Obrigado, gatinha, deste-nos arranhadelas, brincadeiras e muitas horas de boa companhia.

Agora que já não estás em casa, ajudas-me sobretudo a compreender a solidão dos outros, provavelmente parecida com aquela que sinto com a tua falta.  

Agora que entendo todos os solitários com mais clareza, aconselho-vos: fujam da solidão, essa tremenda doença das nossas cidades cheias de gente.

Estimemo-nos entre nós, como se fossemos todos animais de estimação uns dos outros.




1 comentário:

Nuno Henriques disse...

Uma temática diferente mas a sensibilidade de sempre. A luz que literalmente compõe estas singelas palavras de despedida é a mesma luz que acompanha sempre a escrita do Luís. Descansa em paz gatinha !