04/01/2024

Torga e os seus diários

Contínuo a ler os diários do Miguel Torga. Os seus registos produzem-me o efeito de um segredo contado ao ouvido.

Fazem também lembrar-me as gravações que perduram nas caixas negras dos aviões depois da queda: gritos, murmúrios, aflições trocadas entre a tripulação durante a descida abrupta e descontrolada.

É assim a vida dos mortais: cheia de frases inconsequentes, desligadas entre si, enquanto a nave cai.

A diferença do Torga é que pôde escrevê-las com mestria. As dos demais perdem-se para sempre no éter universal.



1 comentário:

Olinda Melo disse...


Grata pelas suas impressões, com um toque poético, sobre os Diários
de Miguel Torga.

Confesso que desses Diários apenas conheço alguns excertos, publicados no Xaile de Seda, como por exemplo:

Mas a vida é uma coisa imensa, que não cabe numa teoria, num poema, num dogma, nem mesmo no desespero inteiro dum homem.
A vida é o que eu estou a ver: uma manhã majestosa e nua sobre estes montes cobertos de neve e de sol, uma manta de panasco onde uma ovelha acabou de parir um cordeiro, e duas crianças — um rapaz e uma rapariga — silenciosas, pasmadas, a olhar o milagre ainda a fumegar.
in "Diário (1941)"

E também refere-se nestes termos à sua segunda pátria, Brasil, no seu livro Diário, de 1957:

Pátria de emigração,
É num poema que te posso ter...
A terra - possessiva inspiração;
E os rios -como versos a correr (...)
Guardei-te como pude
Onde podia;
Na doce quietude
Da força represada da poesia.

Desculpe este comentário tão extenso.

Um abraço
Olinda