22/03/2022

A decisão

Nem mais um poema escreverei.

Nem palavra, silaba ou fonema.

Nada. A...ca...bou!

Chega de lama, indiferença.

Medo da diferença.

Chega de metáforas,

Sinestesias, aliterações

E metonímias.

De escrever e rescrever

O poema dias e dias

verso a verso

estrofe a estrofe

sem ouvir um elogio que seja.

E quando aparece o poeta

é só a sua cabeça numa bandeja.


Basta de implorar que ouçam,

Que me leiam

Disfarçado num pseudónimo

Para não perder o emprego,

Nem a credibilidade

Da minha sanidade mental.


Poeta reles, reles poeta

Como se fosse preciso o adjectivo

Para me dizerem: “Cala-te, cala-te, cala-te.

Vai dar sangue, pá!”


Terei no limite de morrer

Para saber o que valho?

Ó esperança vã, má fortuna, amor errante.

Não! Não creio em mim.

Sou um primo muito muito muito distante

Do verdadeiro Dante.


Não, não me aplaudam,

Não finjam que gostam.

O cinismo venceu, pronto.

Como vão compreender 

A minha dor comezinha

se nem de Cristo se apiedam

Ao vê-lo a sangrar na cruz?


Não vale a pena.

Poema a partir de agora

Só se for para letra de canção

Para que ele pareça um remédio amargo

Impossível de beber sem açúcar.


Comigo não contem.

Tenho já a minha conta,

A minha dignidade,

Também já, alguma idade.

A suficiente para não fazer conceções,

Para não ter ilusões.


Se escrever mais um poema

Será o meu epitáfio

E nada mais.

Porque tenho a esperança

Que milhões e milhões de anos depois

Da minha morte

Marcianos ou gente distante

Leiam a lápide e com sorte,

Digam: ”Que poeta, este.”


Não! É melhor não escrever

Nem para essa gente de Marte.

Seria certamente 

a minha mais longínqua desilusão.

Também tu, Ó universo, tendes razão:

Não tenho arte.


É por isso que já tomei a decisão.

E a escrevi em ata

Com assinatura reconhecida

No melhor notário da Baixa

De que não escreverei

Nem mais um poema sequer.


Pelo menos, até amanhã.


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