12/05/2024

Ensaio com café #1

 Estarei confuso ou apenas ligeiramente sonolento? 

Ontem à noite dancei até ao limite que a minha idade permite. Hoje, cansado, tento encontrar esse fluxo de consciência que produz aquilo a que os formalistas russos chamaram literariedade (1) .

Na clareira da sala, as paredes são renques de árvores, delimitando a perceção da água. A gata que à minha frente se passeia, como uma atriz em início de carreira, torna-se a minha inspiração principal para imitar os sons dos felinos quando animados por uma intenção mais concreta.

Mudando de assunto, quantos dias tem meio-século? Demais, eu sei. 

"Imagens que passais pela retina, porque não vos fixais?", escreveu Pessanha. Poeta que para mim será sempre o mais sincero amigo dos versos. Escrevia-os e pronto. Ali ficavam a viver-lhe na memória. Não havia sofismas, nem segundas intenções. Apenas versos, como se fossem bibelôs chineses que trouxera de um passeio ao campo. Dizia-os às vezes: em momentos que sem querer, nem porquê, se tornavam ligeiramente solenes. Ou então em tertúlias que se estendiam em tardes morrentes até à coroação da noite, regadas com vinho importado e aguardente de arroz.

Voltando agora de novo à precariedade das imagens, poder-se-ia afirmar que uma fotografia lhes daria a eternidade. Porém, não é assim tão verdade. O tempo e o espaço são irrepetíveis e irreproduziveis. 

Talvez um poema possa repetir, ainda de forma cabotina, uma sensação suspensa por trinta pontas presas ao interior de uma bola de sabão. O problema está em interpretá-lo mais tarde, decorridos anos ou séculos após a sua criação. 

Em casos particulares, esse poema apenas representa a expressão de uma rapariga que viajava connosco num autocarro laranja da Rodoviária Nacional. Talvez ela viva agora num T2 em Carnaxide, tendo perdido oitenta por cento  daquele brilho desejoso que o seu olhar prometia, mas que jamais  entregaria a alguém que viajasse como um carneiro submisso a caminho da primeira estação de Algés.


(1) Literariedade: É a qualidade que faz de um texto uma obra de arte literária. Os formalistas argumentavam que a literariedade está nas técnicas e dispositivos usados pelo autor, e não no conteúdo ou na relação com a realidade




4 comentários:

carlos perrotti disse...

Me disculpo, amigo, por tanta demora. Mis ocupacioens aquí no me permitieron llegar antes. Sabrás comprender.
He progamado tu gran poema "Gatos" para el 7 de junio en el Gaterío, donde estárá durante tres días para luego integrar la Bolsa de Gatos del mes y allí (con tu permiso) permanecer en la web. Será un honor prestigiar mi sección con tus versos. Te agradezco otra vez.
Por lo demás, te sigo de ahora en adelante. La alta poesía merece estimularse.
Abrazo hasta vos!!

Luís Palma Gomes disse...

Muito obrigado, Carlos, será uma grande alegria e honra a publicação do poema no teu blogue, tão visitado e com tanta qualidade. Abraço

Graça Pires disse...

Eu sei, meu Amigo Luís que a força das palavras comporta enormes possibilidades de análise. Mas não é o meu ofício, esse, de analisar. Li e reli e fiquei-me pela sugestão que afirma muito mais do que o que foi escrito, ou que talvez tivesse ficado dentro da bola de sabão ou na expressão da rapariga que ia na RN. Realmente ler é assumir grandes riscos...
Desejo que esteja bem.
Um beijo.

Poemas del Alma disse...

Luis, gracias por dejar tu huella en uno de mis blog "Sentir del Poeta"
Me gusto tu estilo, gracias por compartirlo.
Cariños y besos