30/01/2015

"‘A Moura': A verdade do milagre"

Autora: Rita Mata-Seta (Crítica de Teatro do EspalhaFactos.com)

No passado dia 25 de janeiro, Alfornelos parou para conceber um milagre em terras de Ourém. O Teatro Passagem de Nível recuou até ao século XIV, ao reinado de D. Pedro I, para testemunhar, através da história de uma moura, aquilo de que é feito o povo português. Numa tarde de casa cheia, celebrou-se a História de Portugal e o teatro amador, e oEspalha-Factos não poderia deixar de assistir. Se queres ter o prazer de o fazer também, A Moura voltará a ser representada já no próximo dia 30 de janeiro, nos Recreios da Amadora, no âmbito do XIV Fórum Permanente de Teatro, com entrada livre!
Apesar de não ser dia de estreia, a sessão de A Moura a que assistimos, estava totalmente lotada. Não se avistava um único lugar vazio no Auditório de Alfornelos, lar do Teatro Passagem de Nível, instituição de referência no panorama cultural do concelho da Amadora, que completa este ano 34 primaveras. Um ambiente acolhedor e familiar reina neste espaço, onde dezenas de pessoas vão chegando e convivendo à medida que a hora do espetáculo se aproxima.
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A peça teatral a que estamos prestes a assistir é original, mas trata-se de uma saga, uma sequela, segundo o autor Luís Palma Gomes, de uma produção do Teatro Passagem de Nível. Em 1995, o TPN levou a palco Pedro, o Cru, uma peça sobre o trágico romance de D. Pedro e D. Inês de Castro. Agora, em 2015, em A Moura, encenada por Porfírio Lopes, D. Pedro passa a personagem secundária, para ceder o protagonismo a Fátima (ou Oriana, como é chamada em terras cristãs), uma jovem moura, filha de um poderoso sultão. Fátima encontra-se agora enclausurada num convento, na condição de espólio de guerra, aguardando pelo desenrolar das negociações entre cristãos e mouros. Vive rodeada de noviças atrevidas e endiabradas, cuja atividade predileta será pregar-lhe partidas incessantemente.
Mas desengane-se quem deduzir que esta é mais uma história de uma rapariga inocente. A protagonista de A Moura é uma rapariga diferente das demais. Ao contrário do que transparece no convento, não é ingénua nem pura. É corajosa e atrevida. É inteligente, estuda as ciências, leu toda a biblioteca do seu pai, rica em obras filosóficas da Grécia Antiga.
A situação de Fátima transforma-se e a trama intensifica-se por meio dos dramas românticos que a envolvem, ao Alcaide D. Rodrigo, ao Conde D. João Afonso e à nobre D. Beatriz. Fátima apaixona-se por D. Rodrigo, que por sua vez mantinha um caso com D. Beatriz, uma mulher casada. D. Rodrigo pretende recuperar as terras do condado das mãos do seu tio, o Conde D. João Afonso, o qual também está romanticamente interessado em Fátima, e que conspira um plano para expor D. Rodrigo e D. Beatriz como traidores aos olhos de el-rei D. Pedro.
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Embora os dramas da fidalguia tragam o seu grau de entretenimento, aquilo que de maior valor nos traz A Moura é a encarnação do povo. O povo português do século XIV, que em pouco é dissemelhante do povo português contemporâneo. Na taberna, nas ruas ou mesmo em busca dos maridos e pais perdidos para prisioneiros de guerra… Onde quer que o povo apareça, traz verdade, genuinidade, coragem, esperança, boa-disposição,… O povo é a alma d’A Moura. Até ao fim, é ele quem impulsiona a história e lhe confere sentido.
Em última instância, será o povo quem atribui à moura a concretização de um milagre e o título de santa – “a primeira aparição de Fátima”, designação que é nem mais nem menos que o primeiro nome pensado para a peça por Luís Palma Gomes. Julgo ser adequado dizer que a bravura do povo português acaba por se transformar num dos heróis da história e roubar protagonismo aos próprios protagonistas.
Mas a história d’A Moura pode se vista por muitos outros horizontes, tocando temáticas como: a verdade, a compaixão e o amor (nas suas mais variadas formas), em oposição ao poder da intriga, da ganância e do ódio, ou ainda, a dialética ciência/fé.
Nesta peça, as opções técnicas e de encenação (direção de atores, luzes, cenário e sonoplastia) são bastante simples: a ação centra-se nos diálogos – ela decorre nestes e destes. Os figurinos, por sua vez, são um elemento com recurso ao vintage: herdados da produção de Pedro, o Cru, nesta peça são envergados trajes com cerca de 20 anos de história!
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Quantos às interpretações, perante um elenco tão rico em número e em diversidade, houve matéria para todos os gostos: atuações mais dramáticas ou mais naturais e desempenhos mais fortes ou mais fracos. Mas, sabendo que a maior parte do elenco não tem o teatro como atividade profissional, somos levados a reconhecer o grau satisfatório das performances, a um nível geral. Tal tem, em grande parte, que se dever ao esforço coletivo e amor ao teatro com que esta peça foi, notoriamente, construída.
No Teatro Passagem de Nível ama-se representar, ama-se o Teatro. A quantidade de gente que se juntou em palco, para atuar, e na plateia, para assistir, comprova-o! O calor e a união que se sentem mesmo antes da entrada na sala de espetáculos, só por si, já valem a viagem, sejas às terras de Ourém ou de Alfornelos – assiste-se ao milagre do Teatro.

Fotografias de Carla Ferreira cedidas pelo Teatro Passagem de Nível

1 comentário:

Anónimo disse...

Gostei muito da peça e li com muito agrado este comentário, que me atrevo a subscrever quase inteiramente.
Maria Fernanda Pinto