18/01/2013

Logo por debaixo da pele...




"Il pleure dans mon coeur / Comme il pleut sur la ville " - Paul Verlaine   (1844-1896)

Ele estava desesperado e sem boca. Inflamado e sem inchaço aparente. Queria ser um poeta melhor,  mas havia uma extensa porção de razão que lhe faltava ainda visitar. Para além desse desafio, choviam demasiadas preocupações dentro dos seus versos.  Queria ser um engenheiro reconhecido entre os seus pares, mas apenas construía, num silêncio desvairado, castelos de éter.  Agora ele percebia porque foi sempre avesso aos atributos com que os outros  o queriam enjaular, tão avesso à especialização dos sentimentos, tão inquieto entre os vidros do pequeno quotidiano. Não queria limites e só por isso corria nas planícies de palavras. Escrevia espirais para se embriagar, linhas paralelas, para ter uma singela sensação de infinito. Escrevia também rectas concorrentes pelo prazer de conhecer alguém. E assim  preencher os  momentos raros de solidão indesejada.

Tinha quatro gatos em casa e nenhum possuía nome.

Teatro era a palavra mais certa para definir a viagem que ele presumia fazer pela vida adentro. Uma viagem que, tirando ele, ninguém via ou ouvira falar. Uma viagem apenas fantástica porque ele mesmo se enlouqueceu em consciência, para distorcer o tédio que o enrolava como uma onda e o atirava à praia.

Devido à sua relutância em ser nomeado sempre pela mesma palavra ou reconhecido por um rosto apenas, gostava que o chamassem somente de ator, o senhor ator. Estava convicto que eram sobretudo os substantivos comuns que religavam os homens diante das coisas. Seria um daqueles  atores que se partem em cacos e que se atiram depois  pelos palcos dispersos na cidade de Deus. Esse Deus só às vezes visível e tangível, mas em quem tinha  a preciosa esperança da sua redenção.

Tomou mais um ansiolítico como quem se embrenha num exercício de Yoga. Apesar do desalento, não desistia.  "Ó meu Deus, como posso eu desistir antes de começar sequer?" - pensava ele e ria por dentro.  O desespero é absurdo e o absurdo é ridículo e o ridículo fazia-o rir. Por isso, gostava tanto de rir. Porque conhecia absolutamente o absurdo e a loucura que dele deriva.

Abriu o móvel da sala e escolheu um dos álbuns habituais. Meteu a "Inquietação" do José Mário Branco a tocar: "Há sempre qualquer coisa que eu tenho que fazer/ Qualquer coisa que eu devia resolver/ Porquê, não sei/ Mas sei/ Que essa coisa é que é linda". Estes versos soavam-lhe como um hino. Logo, a seguir pôs a tocar um samba antigo para compensar tanto lirismo que, em contacto com os ansiolíticos, podia acordar o vulcão cardíaco e incendiar os olhos da razão.

Se tivesse sido músico ou pintor ou escultor, teria concertos e exposições e galerias e alunos e discursos, mas era apenas um auto-determinado ator e todo o ator é um poeta se verdadeiramente o for. Porque o poeta inventa o mundo inteiro por um breve instante. Depois mete-se dentro dele e os outros acreditam na sua ilusão. Mais tarde, fecha-se  o pano. Alguns espetadores aplaudem por pena. E o poeta ali fica a sufocar em realidade, como um peixe no cais, ainda aturdido pelo sonho, pelas luzes, pelos aplausos com que os outros brindaram a sua nudez.

Ser poeta é querer estar nu, mesmo que o granizo não dê tréguas. Por isso, todos aqueles heterónimos,  pseudónimos, suicídios, afastamentos,  bebedeiras secas ou molhadas são apenas fugas feitas por pudor e restos de preconceito. Por isso, aquele frio que faz ansiar por outro corpo que nunca chega.

Dizem que demasiado oxigénio mata.Talvez por isso  ele recusava respirar ou deixar correr qualquer  corrente de ar pela ferida aberta. Não gritava, não inspirava, não suspirava e não morria. Se faz sentido para um morto, não beneficiava  um vivo levemente  inquieto, como ele era.

Chovia lá fora. O comboio, como habitual,  passou perto da  janela e estremeceu-lhe o alento. Mas passava sempre. Passava e nunca ficava, ao contrário daquele desespero sem boca sequer.

1 comentário:

Duarte Belo disse...

Caro Luís Miguel, muito obrigado por esta sugestão de leitura. Surpreendente. Gostei verdadeiramente.
Duarte