29/07/2021

Desnível Bar 2 – Apontamentos Suburbanos da Pós-Modernidade

Devido aos quadros do "Desnível Bar 2" serem escritos por três gerações de autores: 1ª - Alice Lança e Borges Lopes; 2ª Domingos Galamba e Luís Palma Gomes; 3ª Beatriz Cazenave e Pedro de Castro pode mapear-se no espetáculo a evolução da pós-modernidade  segunda metade do século XX até agora, onde o consumismo se tornou o sentido da vida; o individualismo causou alienação; a vida  perspetivou-se em curtos espaços de tempo, gerando a precariedade social; a espiritualidade desejou-se leve, digestiva e cómoda; a prioridade do reconhecimento do outro sobrepôs-se à realização pessoal anónima; algumas personagens ambiciosas  procuraram  uma história aparente e glamourosa; um dilema  entre a função e a fruição interpelou-nos; as questões de género e de transgénero perspetivaram-se sobre um novo prisma moral e  ético;  e um desejo de segurança  conduziu ao medo constante, neurótico. 

Todos estes aspetos se concentram-se em quadros específicos ou se dispersam pelos 14 que compõem o espetáculo.

Podem julgar a intenção presunçosa ou demasiado ambiciosa. E que seja. É uma proposta de interpretação de um espetáculo escrito, dirigido e representado por aqueles que convivem ou conviveram com estes fenómenos nas suas vidas. É a vox populi, tal e qual, sem edição, nem filtros.

O "Desnível Bar 2" tem um espaço cénico absurdo, onde o caos se sobrepõe à ordem. Lembra “A sociedade líquida” de Zygmunt Bauman, onde a forma é inconstante, difícil de definir ou circunscrever, o futuro torna-se imprevisível e instável, dado que as moléculas de água não configuram uma estrutura sólida.

 Não será nada de novo insistir que o mundo — para efeito, um bar — não foi feito à medida dos humanos e que nos cabe o ónus da adaptação. Diante desta realidade, o "Desnível Bar 2" convida a um plano de contingência: lançar um sorriso cúmplice, enquanto nos olhamos a nós próprios do outro lado da quarta parede. Eis a análise pessoal à 43ª produção do TPN, encenada por Porfírio Lopes e representada por nobres atores que merecem um forte e veemente aplauso: Rui Ferreira,  Carla Abreu Ferreira, Matilde Cañamero, José "Vespaman",   Joao Cazenave , Sandra Santos, Tânia Catarino, Gonçalo Marques, Ana Simões, António Dias, Luís Tenente, Teresa Tenente, Aldina Nunes.

NOTA SOLTA: O teatro não pode ser mais uma forma de alienação. Aliás a sua subalternização ou auto desfoque contribui para o empobrecimento da capacidade crítica da comunidade.

Cartaz e programa: Marina Palácio

Cenografia: Paulo Oliveira 

Música: Gonçalo Marques



27/07/2021

Templo verde

a rã cala-se

murmura o vento

nas folhas altas


canta a ave

no pico do verão

a rã escuta


o monge reza

à sombra do teixo

templo verde



26/07/2021

O dia da vida

Só há um dia,

quando muito

alguns segundos mais 

tão gratuitos 

como aqueles jornais

prenhos de anúncios 

que nos dão à saída  do metro. 


Só há um dia

para beber a alegria e a angústia

num trago apenas,

ficar a pensar que bom seria

que a vida fosse uma película 

para a podermos ver várias vezes

numa sala de cinema.


Só há um dia, 

uma penugem de ervas esparsas 

onde os pássaros se escondem

um pouco  antes de caírem no céu.

18/07/2021

Os lábios dos sinos

Vêm-me ao pensamento os aflitos. Amanhã serei um deles. Nada mais certo. Entendo-lhes o desespero. Rezo por eles, por mim, à virgem mãe: eterna, humilde, libertadora. 

Os sinos ao longe respondem às  minhas orações. O som vem disperso pelo vento. Apenas ouvidos treinados o podem traduzir.  Não serão os meus que não mereço tal graça, que não nasci com tal dom. 

Ainda assim quase que os entendo como aqueles surdos-mudos que leem as palavras nos lábios dos outros, sussurrando: "Assim será,   assim será".

12/07/2021

O andorinhão

 Do cimo do ninho, o andorinhão espreita a colina que varre a cidade ao encontro do horizonte. A distância entre ele e o chão impressiona-o. Teme levantar voo, o primeiro voo. Cerra os olhos e o perigo desaparece logo. As pálpebras brancas corridas como persianas lembram o olhar de um cego.


O sol abre uma clareira entre as nuvens. O pássaro sente a intensidade da luz e descerra as pálpebras. Tem uns olhos negros, enormes e globulares. São desproporcionais relativamente ao resto da cabeça. Em redor, um bando da sua espécie cruza o ar, emitindo guinchos. Assim de repente, parece que o convidam para a vida. Ele não reage, porém. Há na sua perceção lenta um abismo que ganha forma debaixo dele. O que para nós, humanos, pareceria uma visão aterrorizante, para uma ave que pode voar 11 meses seguidos sem pousar, aquele buraco enorme torna-se um convite para uma possibilidade fantástica.


As patas desta espécie são atrofiadas, devido a pouco serem usadas. Por isso, o juvenil arrasta-se como pode até à borda do ninho; deixa-se cair; abre as suas asas estreitas, mas longas e fortes como um caça de guerra construído em titânio. A vida dele é a partir de agora uma batalha absolutamente aérea.


O abismo que parecia um lugar inóspito, ajuda-o a acelerar o voo. Parece que já voava antes de sair do ovo. Uns metros antes de embater no alcatrão da avenida, inverte o sentido voo em direção ao céu, aceitando a dádiva que lhe foi concedida. Agora sim, voa com uma competência impressionante para uma ave acabada de sair do berço. O céu ganhou um anjo de plumas cinzentas.

08/07/2021

O dia da vida

Só há um dia,
quanto muito
 alguns minutos  mais 
mas tão gratuitos 
como aqueles anúncios 
que nos dão à saída  do metro. 

Só há um dia
para beber a alegria e a angústia
num trago apenas
e ficar a pensar que bom seria
que a vida fosse uma película 
para a vermos repetida 
numa sala de cinema.

Só há um dia, 
uma penugem de ervas dispersas
onde os pássaros se escondem antes de caírem no céu. 



04/07/2021

Quase poemas

(primeiro)

 Já me falta a energia que projeta os vencedores do salto em comprimento, que rompe com a  inércia dos discursos comemorativos quando embalam.

Agora contemplo sempre as mesmas coisas num tédio onde me defendo do tempo que foge.

Ao passear a cadela pelo campo, regresso às manhãs ásperas de outrora, esquecendo-me por momentos da eterna e dulcíssima noite apalavrada.


(segundo)

Não digam a ninguém que andam  por aí a escrever poemas:

"Que perversão", diriam, "Que infâmia" esbanjar assim o tempo sem fritar rissóis ou ajudar os outros corpos a saltar a cerca dos amanhãs  prometidos.

(terceiro)

Na primeira prateleira, encostado aos meus livros de solteiro, tenho um asténico mealheiro, onde as moedas aos cair, fazem sair voando morcegos travestidos de borboletas azuis.

Ajuntando-se junto ao candeeiro, o bando lembra-me o perfil do sábio persa que escreveu o primeiro tratado sobre a música que faz os astros ficarem felizes.