Os cavalos foram símbolos de poder durante muito tempo. Agora, já pouco dizem ao homem urbano. A sociedade troca de símbolos de vez em quando. Os sinais são mais perenes: um grito ainda é um grito e um trovão, um trovão. Os cavalos, como símbolos de poder, tornaram-se miniaturas prateadas numa famosa marca de automóveis. Os equídeos de carne e osso são mais discretos ou raros. Lembram-nos porém um pacto nobre que fizemos há muito com eles.
26/02/2021
Reflexão: um pacto nobre
23/02/2021
Reflexões na aldeia: o caos e o cosmos
O rio vai calmo, quase estagnado. O verão é lento e manso. Só percebemos que o rio passa porque leva uma folha côncava a fazer de caravela.
Quando as águas passam, entendemos que já não voltam. Olhamos depois para montante — e vendo já as vindouras — verificamos que tudo se renova: aos nossos pés, temos as águas presentes, que nos banham, refrescam ou arrefecem mesmo se o banho se demora. Parece falta de visão, mas, frágeis e erráticos, aprendemos a contar apenas com "aqui e o agora".
Será tudo resto incerteza ou distância? O rio parece dizer-nos que a nossa vida é um cosmos, e não um caos como às vezes parece. Se assim pensarmos ficamos menos ansiosos, mais disponíveis para aceitar as águas que foram e as que ainda aí vêm.
Eles
Onde eles começam,
acabo eu.
Onde eles acabam,
eu começo.
Quem são eles?
Eles são eles.
Estão do lado de fora dentro de mim.
16/02/2021
Reflexões na aldeia: a viagem vertical
Ao longe uma chilreada de estorninhos deleita-nos os ouvidos. Mais perto, as cabras roem algumas cascas de troncos de oliveira. As ovelhas aninham-se entre si como se fossem uma família terna. O sino marca mais meia hora.
Porque será que vemos uma paisagem monótona vezes sem conta e nos parece sempre interessante? Porque tudo aquilo que se torna sagrado ganha profundidade, na razão inversa em que perde superficialidade. E apenas o que é profundo permite o mergulho, a tal viagem vertical. Se o mergulho se prolongasse, haveríamos de nos maravilhar boquiabertos com uma simples gota de orvalho.
Black hole
Dizer.
O que é preciso dizer ?
O que é preciso fazer
nem os meus nem os teus lábios dizem.
Lisboa, 1995
13/02/2021
Perdidos
A obsessão das águas
incendiando as formas
as nossas formas turvas
de aves sem paraíso
Lisboa, 1995
09/02/2021
Éden
Verde
diz-se traição
no olhar da serpente.
Mas o nosso olhar
não se diz, nem existe.
Porque é fluído e nosso,
e nós traímos
a vã tradição de existir.
Queluz, junho de 1992
06/02/2021
Invenção
Ontem
fingi um céu
para que os poemas que te escrevi
pudessem voar.
Resolvi não dizer-to.
Alguém me disse que em segredo
voam melhor.