26/02/2021

Reflexão: um pacto nobre

Foto de Fátima de Castro em Salvaterra do Extremo

Por detrás das quelhas, velhos muros de granito, distribuem-se os animais domesticados: ovelhas, cabras, porcos e cavalos. Meia dúzia de cães guardam-nos, cumprindo o ofício. Ao passarmos, os herbívoros correm ao nosso encontro. Esperam guloseimas que por hábito lhes levamos: restos de fruta, ervinhas tenras e, com sorte, uma ou outra cenoura. Os eleitos deste ano foram dois cavalos. Guardados longe da aldeia ainda não percebemos quem os cria e por quê?

 Os cavalos foram símbolos de poder durante muito tempo. Agora, já pouco dizem ao homem urbano. A sociedade troca de símbolos de vez em quando. Os sinais são mais perenes: um grito ainda é um grito e um trovão, um trovão. Os cavalos, como símbolos de poder, tornaram-se miniaturas prateadas numa famosa marca de automóveis. Os equídeos de carne e osso são mais discretos ou raros. Lembram-nos porém um pacto nobre que fizemos há muito com eles. 

23/02/2021

Reflexões na aldeia: o caos e o cosmos

O rio vai calmo, quase estagnado. O verão é lento e manso. Só percebemos que o rio passa porque leva uma folha côncava a fazer de caravela

Quando as águas passam, entendemos que já não voltam. Olhamos depois para montante — e vendo já as vindouras — verificamos que tudo se renova: aos nossos pés, temos as águas presentes, que nos banham,  refrescam ou arrefecem mesmo se o banho se demora. Parece falta de visão, mas, frágeis e erráticos, aprendemos a contar apenas com "aqui e o agora". 

Será tudo resto incerteza ou distância? O rio parece dizer-nos que a nossa vida é um cosmos, e não um caos como às vezes parece. Se assim pensarmos ficamos menos ansiosos, mais disponíveis para aceitar as águas que foram e as que ainda aí vêm.

Rio Erges (1º afluente do Tejo) - Salvaterra do Extremo


Eles

Onde eles começam,

acabo eu.

Onde eles acabam,

eu começo.

Quem são eles?

Eles são eles.

Estão do lado de fora dentro de mim.

16/02/2021

Reflexões na aldeia: a viagem vertical

Ao longe uma chilreada de estorninhos deleita-nos os ouvidos. Mais perto, as cabras roem algumas cascas de troncos de oliveira. As ovelhas aninham-se entre si como se fossem uma família terna. O sino marca mais meia hora. 

Porque será  que vemos uma paisagem  monótona vezes sem conta e nos parece sempre interessante? Porque tudo aquilo que se torna sagrado  ganha profundidade, na razão inversa em que perde superficialidade. E apenas o que é profundo permite o mergulho, a tal viagem vertical. Se o mergulho se prolongasse, haveríamos de nos maravilhar boquiabertos com uma simples gota de orvalho.


Casa Pinheiro - Salvaterra do Extremo(Idanha-a-Nova)


Black hole

Dizer.

O que é preciso dizer ?

O que é preciso fazer

nem os meus nem os teus lábios dizem.



Lisboa, 1995

13/02/2021

09/02/2021

Éden

 Verde

diz-se traição

no olhar da serpente.

Mas o nosso olhar

não se diz, nem existe.

Porque é fluído e nosso,

e nós traímos

a vã tradição de existir.


Queluz, junho de 1992

06/02/2021

Invenção

Ontem

fingi um céu

para que os poemas que te escrevi

pudessem voar.

Resolvi não dizer-to.

Alguém me disse que em segredo

voam melhor.

02/02/2021

Fertilidade

Dorme,

semente incauta,

um sono de gente nua

no ventre

da última primavera. 


Aguarda

sobre o sexo da terra

que a humidade  da noite

e o feitiço do corpo

te façam mulher outra vez.




Julho, 1992

01/02/2021

Resumo

Agora e sempre

a noite a seguir ao dia

mesmo que ao lar

não regressemos,

mesmo que se quebre

o fio de agua que nos prende.




Belas, agosto de 1993