29/06/2020

Pinheirinhos, Malavado, Litoral Alentejano

Aqui em nenhures, ouve-se o rouxinol exigindo a noite, enquanto o vento canta nas mais altas ramadas dos pinheiros. Ao longe,  zurra o burro chamando o seu deus desconhecido. Tudo isto me encanta, tudo isto me é breve e longínquo como um deserto de areia e neve. Soube em tempos que a terra é redonda e gira como uma maçã na mão de quem pensa em trincá-la.

Agora esqueço tudo e caminho desamparado pelos regos que a chuva faz  quando cai sem controlo nas tardes de novembro. Pergunto aos bichos que dia é hoje e só a aranha me revela o segredo da sua esperança: que uma mosca vesga entre pela sua teia, que feche a porta, que apague os restos de luz que a lua nova se esqueceu de levar consigo.


Para além do amor

Para  a Fatinha

O que há depois do amor, do paraíso, da felicidade plena, da mais justa e brilhante recompensa?

Tu não és o amor, porque ele é coisa de livros, alfarrábios, filmes antigos.  

Tu és qualquer coisa que caiu e dilui-se dentro de mim. E agora flui do sangue às lágrimas, da carne desejosa dos lábios ao centro industrioso do peito.

Queria escrever-te com as pontas dos dedos em carne viva, com uma tinta rústica, inflamante.

Queria-te sempre sempre na minha boca pequena demais para o teu beijo.

23/06/2020

A sombra ardente

Talvez sejamos apenas 
a última sombra
de uma misteriosa linhagem, 

aguardando que o zénite solar
nos devolva a essência desassombrada 
de uma missanga unida às outras
pelo fio primordial.

22/06/2020

A beleza como elemento de perenidade cultural

Há uma tentativa biológica para a preservação de um código genético post mortem. Este artifício é comum à vida animal e vegetal. Porém, a humanidade agrega-se em torno de núcleos de informação constituída por uma linguagem simbólica que tende a tornar-se mais complexa ou a adaptar-se aos diferentes contextos históricos, sociais e geográficos. Também, a cultura aplica mecanismos de sobrevivência, onde o esforço tem como intuito a preservação de uma identidade colectiva ou individual.

A língua,  como mecanismo essencial para a manutenção de uma cultura no tempo, e os seus utentes, através dela, utilizam duas estratégias convenientes para a sua sobrevivência entre gerações e geografias diferentes: razão e beleza. Na primeira, a coesão da mensagem é garantida por uma lógica imanente aos pensamento humano e  também por uma oportunidade epistemológica. A beleza, suportada por convenções temporais, tem de encontrar um plano que lhe assegure a perenidade. Tratando de um conceito humano, ou pelo menos, utilizado nesse contexto, é nos elementos intrínsecos que ela se vale para sobreviver.

Para que o objecto, enquanto emissor cultural, se preserve tem de contornar padrões estéticos perecíveis e resultantes de diversas épocas e ficar fortemente dependente de um elemento mais estável e homogéneo do espírito humano: os sentimentos.

Os sentimentos, como resultado das emoções, tendem também a registar algum dinamismo no tempo e uma variação com origem no receptor. Cabe assim à beleza encontrar o menor divisor comum entre os receptores para manter-se perene e imaculada. 

18/06/2020

Dois riscos

Dois riscos
na areia
junto ao mar.

Lado a lado
caminham indiferentes 
a qualquer destino comum.

A onda 
que vai e vem 
os apaga e une
à imensidão da praia.

16/06/2020

Paixão

Era como se a dor se  tivesse esquecido de magoar, quando o algoz sacudia o chicote na minha pele.

O meu corpo encolhia até  ao limite ínfimo de não pertencer mais à alma que o carrega. Ainda assim, não parava o carrasco de sacudi-lo - "zás, zás" - alimentando de malvadez, os cínicos transeuntes.

Não pares, facínora! Daqui a nada encontrarás apenas o vento contra o vento da tua impiedade.



(English version by Google tradutor. It sounds good!)

Passion

It was as if the pain had forgotten to hurt, when the executioner shook the whip on my skin.

My body shrank to the smallest extent that it no longer belongs to the soul that carries it. Even so, the executioner did not stop shaking him - "zás, zás" - feeding the cynical passers-by with malice.

Don't stop, bitchy! From nowhere you will find only the wind against the wind of your wickedness.


12/06/2020

"Caminhar oblíquo" de Duarte Belo

Porque espero voltar a este livro, "Caminhar oblíquo" de Duarte Belo, de uma forma mais analítica e profunda, deixo aqui o primeiro trecho do livro dedicado à "ROUPA" que o autor-caminhante levou na sua travessia de Portugal. Este texto resume para mim a índole de Duarte Belo - a sua ligação ás coisas simples e essenciais, a sua ética, a sua forma de habitar. Aproveitem:

"ROUPA - Tenho algumas peças de roupa, sobretudo camisolas de manga curta que uso recorrentemente há mais de 20 anos. São peças puídas pelo tempo, com muitas marcas do quotidiano exterior. Foram muitas paisagens percorridas em serranias, vales, ou junto à orla costeira, muitas vezes num esforço considerável. As manchas ou "desenhos" impressos pelo uso são como um mapa dessas  viagens, uma interpretação oblíqua dos lugares visitados, das noites passadas ao relento dos campos. É um tecido construído por uma existência, reflexo do tempo que passa, reprodução, de alguma forma, de um corpo. Roupa velha, sinal de pobreza, a procura de uma existência mínima, determinação, perseverança, continuidade, resistências múltiplas. Também a fuga a determinados códigos sociais na procura da solidão para ir ao encontro de "toda a terra", dos lugares que falam, de uma natureza austera, avassaladora, fascinante, complexa. Procurar linhas de perplexidade. Dialogar com o medo. Vestir o despojamento"

Excerto de "Caminhar oblíquo" de Duarte Belo
Edição: Museu da Paisagem, Lisboa, 2020


10/06/2020

A pedra

Preso, quase esmagado, 
por debaixo da pedra, lembrei-me:
não há difamação, 
apenas auto-censura.

Levantai a vossa pedra, irmãos, 
e confessai-vos.

09/06/2020

A propósito do poema "Cerco Invisível"

Quando escrevo poesia fico sempre com a sensação de produzir coisas banais. Mas é assim. Acho que ensaiamos a vida inteira o mesmo poema. Contudo ele vai surgindo fraco, fragmentado, equívoco. 

Escrevi este poema, "Cerco invisível", para dizer que estou cercado pela minha condição de poeta. Tentei vários expedientes, atividades, ocupações mas todas elas eram afinal versos do mesmo poema. Talvez seja uma epopeia homérica ou um haicai, poema japonês com 17 silabas apenas. Não sei. Apenas sei que só existe o que tem nome e por isso este cerco de palavras que nos envolve. Algumas das minhas, vêm de não sei onde? Escrever poesia é uma espécie de transe, em que o pensamento fica tomado por uma vontade de encantar, sublimar, inovar a linguagem. 

Eu não tenho a certeza se quero ser poeta, mas é inevitável sê-lo. Nem que para compensar tenha de comer mais vegetais, correr todos os dias ou aprender matemática. E tudo isto porque ninguém pode ser absolutamente poético. Temos administrar a poesia, como fazemos com tudo o que é bom, mas arriscado na vida. Temos de escrever às escondidas, não mostrar ao chefe, nem aos amigos da bola. Criamos a nossa rede de cúmplices do crime poético. Lemo-nos uns aos outros e às vezes, sabe Deus, como um frete. Mas é um tributo que prestamos. E se de facto a poesia é, para alguns, um culto perverso, pergunto porquê? Talvez pensem que as palavras não devam dominar os homens, mas o inverso. Talvez temam perder essa luta com as palavras.  E que elas por fim os encantem, como fazem as sereias, e os atraiam para a desgraça de se tornarem prisioneiros da beleza ad eternum.

Tudo isto para me/te explicar o tal poema. Estou cercado pela poesia. Não tenho saída. Resta-me caminhar com cuidado e atenção para não me deixar submeter, como escreveu o Milan Kundera, à "insustentável leveza do ser".

Cerco invisível

Espremo as palavras. 
Tiro--lhes o pus dos hematomas 
que me foram deixando pelo corpo.

Elas são a doença onde me curo,
ascensores ofegantes 
elevando-me aos pássaros 
para que caia de bruços sobre as pedras.

Não há como fugir do seu labirinto 
de sentidos já comprometidos. 
Não há como entregar as armas 
aos pés do inimigo. 

Nada há para além delas.
Porque o mundo foi tomado
pela paixão das palavras. 

E a única pergunta a fazer
é se a vida acaba ou não como um poema?

07/06/2020

Hoje vou à casa do meu pai

Hoje vou à casa do Pai. Tenho saudades do seu espírito terno que sempre me abraça, quando eu, derreado e ferido,  O procuro. Vou-lhe pedir que me perdoe por ser homem e por isso pecador. Vou-lhe dizer que não desisti, apesar das traições que lhe faço todos os dias. E que perdoe também aos seus filhos que, em seu nome, o traiem por ignorância ou medo. Bastaria conhecer as tentações que Jesus sofreu no deserto para entender que não devemos evocar o seu poder para: aumentar o nosso; saciar as nossas carências matérias; ou para o tentar, pedindo-lhe mais do que ele nos pode dar.

Tenhamos atenção e sejamos prudente, quando apelarmos ao Pai em nosso auxílio. 

Sejamos humildes, porque também Jesus Cristo foi o cordeiro de Deus.