29/05/2020

Antepassados

Entro com os pássaros
dentro da casa lírica.

Abro o congelador
e tiro de lá
as memórias informes dos sentidos.

Não conheço ainda a sua língua
de sinais para mim desconhecidos.

Mas sei de antemão,
que há ruídos difusos,
névoas configurando bustos
e cheiros particulares
que me trazem até aqui a vossa ausência.

Sob a sombra da minha mão
desfilam letra a letra
o som imersivo das vossas ternas vozes
sussurrando a razão deste regresso inesperado.

24/05/2020

A doce revolta

Todos os dias se envenenam Sócrates.

Todos os dias se crucificam Cristos.

Todos os dias se fecham teatros para abrir circos.

Todos os dias se gaseiam inocentes.

Às vezes ao longe, outras defronte de nós,
todos os dias olhamos para isto,
enquanto comemos o nosso croissant. 

Aprendemos a viver assim.
Aprendemos a dormir  assim,
esperando acoitados 
que os deuses da fortuna não se lembrem de nós. 

23/05/2020

Ode à vida

     In memoriam Luiz Pacheco


Deixem entrar as moscas.

Abram as portas
para os vermes rastejarem
defronte da Smart TV.

Deixem  as canas crescerem
por detrás dos biombos chineses.

E que os fungos, ó senhorios,
vos pintem os recantos das paredes.

E que todos os pelos do corpo
se alonguem até à exaustão.

E que as barbas rastejem pelo chão
marcando um rastro de serpente
sobre o pó lamacento do hall.

Deixem cair o telhado
e vejam as estrelas.

Entrelacem os membros
dentro da cama húmida
num puzzle de suor e germes
que também são vida, caramba!

E quando os javalis e as estevas
partilharem a cozinha
e os gamos e os cavalos raparem
os últimos vestígios do jardim,
estás livre.

Nasce outra vez.

18/05/2020

A canção do prado



"Eis o prado", disse Pilatos
antes do verão ao resto do povo.

"Eis os pássaros
 lavrando com o vento 
e semeando com o pó
uma seara caótica de flores e  sóis",
disse-lhe à noite a mulher de Pilatos,
quando estavam a sós.

"Eis um cavalo
prenhe de pólen
ruminando com tempo
largos tapetes de estrelas e caracóis",
disse pela manhã um velho mercador
vindo de Jericó.


17/05/2020

O diluvio da primavera

Hoje, no jardim do vento, tudo se aquietava como numa fotografia antiga. Os prados tinham engolido os canteiros municipais e uma águia reinava nas esquecidas rotas comerciais.

Ao longe, Noé refazia mais uma vez a Arca com tripas e peles de um tanque de guerra abandonado. Enquanto um cavalo alado com asas de cotovia esperava calmo pelo fim da empreitada bíblica.

A Este, um rumor se agigantava. Era o diluvio da primavera que se anunciava, caudaloso e imparável, como um delírio sagrado. 

12/05/2020

O caminho

Tenho um mestre que me alumiou a caverna da alma, permitindo-me ver como é clara e acolhedora aquela gruta. Vejo agora  como a escuridão havia escondido tantas galerias maravilhosas, quantos recantos aprazíveis. Outrora a luz difusa que penetrava na caverna, criou-me muitos mal-entendidos. Apenas agora posso ver e compreender a razão dos meus erros, a percepção deficiente das formas, dos trilhos, os movimentos circulares da antiga caminhada que não me levava a parte alguma. Afinal era tudo simples e eu teimava em seguir as veredas da paixão, esquecendo as do amor.

O mestre avisou-me que o caminho simples, não é fácil, mas proveitoso. É uma viagem com obstáculos, cruzamentos, dispersão, atracções que nos apelam a parar. É preciso coragem, confiança e muitas vezes paciência e humildade para concluir que estava outra vez na direção errada e que devo regressar ao troço anterior.

Jamais faria esta caminhada sozinho. Não seria capaz sem a ajuda dos outros e porque gosto também  de partilhar com os companheiros as galerias que encontro: silenciosas e de uma transcendência a perder de vista.

"O caminho não é fácil" é a frase que lateja na cabeça, como uma cefaleia. Porém, tenho a intuição que vale a pena. Sobretudo quando olho em meu redor e sinceramente não vejo outro melhor.

11/05/2020

Temporis aeterni

Onde está a vida? Para a frente ou para trás? Procuro a verdade na revoada dos pássaros, sem saber se chegam ou partem. Continuo ignóbil. Parece-me que apenas existe este momento em eterno movimento, pois ele é tudo, quando no olhar atento do perdigueiro se reflecte. De que são feitas  então a lembrança e a esperança? Serão vasilhas vazias, onde guardamos as sobras da água à espera que evaporem?

"Carpe diem" - "Aproveita o dia" - lembrou-nos um epicurista, sabendo de antemão de que não valeria de nada guardar o pão, o vinho e o circo. E que o bolor e o azedume são a vingança dos deuses para quem por estratégia ou avareza decidiu guardar o dia de hoje para depois de amanhã.

Dancemos, então.


Nota: "Temporis aeterni" (latim) significa "O momento eterno".

10/05/2020

A origem

Nada do que escreves é teu.

Tudo se afasta e retorna
como o som ofegante
de quem respira cansado
de fugir.

Se ainda não sabes ao certo
de onde te chegam as palavras,
abriga-te, então.

Vais ter de esperar
para saber se vais ou vens
da nascente.

08/05/2020

A felicidade das pedras

Sei que finda  toda a esperança, 
na revolta poderia reerguer-me.

Mas fecho-me
dentro das próprias pálpebras 
tentando na fatalidade entender
porque são felizes as pedras,
mesmo com o coração cheio de penas. 

06/05/2020

Dia infinito

Sabemos que só temos este dia, por enquanto.

Ele será a luz e as trevas,
o maná e a fome,
a esperança e a angústia.

Sabemos que só temos um dia por dia,
uma rumorosa volta em torno do universo.

Contemplemos então o infinito. 

05/05/2020

Gostas do silêncio ou da poesia?

"Words are trivial
 Pleasures remain
 So does the pain
 Words are meaningless
 And forgettable"

(Depeche Mode em "Enjoy the Silence")

O primeiro estado do amor, a paixão, produz naquele que ama uma representação platónica do ser amado. Entre o signo (significante) e o símbolo (significado) ocorre uma projeção do primeiro para o segundo. A incerteza do retorno desta projeção - ou seja, o que acontece ao ser amado quando toma conhecimento do estado de consciência daquele que ama - é de uma grandeza proporcional ao grau da paixão. Os grandes amantes - porventura aqueles que melhor registaram as impressões, os sofrimentos ou entendimentos que derivam deste sentimento - fazem perdurar o estado amoroso num espaço físico que não se confina ao objecto amado e num espaço temporal que extravasa a duração da relação uni ou bilateral.

"e sinto tanto bem só na memória
  de vos ver, linda Dama, vencedora,
  que quero eu mais que ser vossa a vitória?

 Se tanto vossa vista mais namora
 quanto eu sou menos para merecer-vos,
 que quero eu mais que ter-vos por senhora?" 

(Luís Vaz de Camões em "Aquele mover de olhos excelentes")



Mais do que o conhecimento  científico sobre esta matéria, o  qual confesso nunca ter lido, foram os poetas que sublimaram o amor platónico, o amar a coisa por si própria independentemente de serem ou não correspondidos, de ser ou não o amor frutífero.

"Mas sabia e sei que um dia não virás
 que até duvidarei se tu estiveste onde estiveste
 ou até se exististe ou se eu mesmo existi
 pois na dúvida tenho a única certeza
 Terá mesmo existido o sítio onde estivemos?"

      (Ruy Belo em "Muriel")
.

Nos antípodas desta lógica amorosa está a necessidade de materialização, quando o acontecimento ganha relevo ante sentimento. Analisando estes dois pólos que designam o  amor como um ato ou uma vontade, fica-se na dúvida qual deles será o mais humano, o mais genuíno, o menos onanista ? Numa primeira abordagem, o que se materializa oferece prazer, conforto, afecto, supostamente em ambos os sentidos. Mas pode também este ser egoísta, e na medida em que  se concretiza e edifica,  erradicar e destruir  outros laços estabelecidos anteriormente pelos amantes na complexidade afetiva e social em que se movimentam. A literatura nascerá aqui como uma terceira via, um espaço alternativo onde a paixão não passando de um ensejo ou idealização, acaba por se afirmar definitivamente sem se concretizar. Assim este entendimento e sofrimento concorrem para um lirismo, tão vulgarmente denominado de delírio. Se valerá ou não a pena, apenas o poeta o saberá.

"A causa, enfi, m'esforça o sofrimento,
 porque, apesar do mal, que me resiste,
 de todos os trabalhos me contento;
 que a razão faz a pena alegre ou triste."

(Luís Vaz de Camões em "Aquele mover de olhos excelentes")


03/05/2020

Amor

Amor:
Que suave encantamento!
Que transe doce e ledo ele nos traz!
Claro que podemos amar sozinhos, 
Amar pelos dois.
Por que o amor é só um pensamento.
Nada mais.