30/06/2019

O eucalipto

Passei pelo sítio exato  onde os meus avós viveram. A casa desapareceu há muitos anos atrás. Também já não vejo o grande eucalipto que lhe dava abrigo e enquadramento. Apenas o imagino como um foguetão, um cipreste dos cemitérios pronto  a descolar rumo aos céus numa noite qualquer, estrelada de preferência. Agora, resta apenas um prado de ervas altas, onde as carriças fazem os ninhos e criam a prole.

Ainda assim venho aqui sempre que posso, como aquela cria de veado que não se afastava do resto da carcaça da mãe, devorada por uma alcateia de lobos. Vi isto num documentário da National Geographic, gravado no parque natural de Yellow Stone e nunca mais o esqueci.

Felizmente, consigo reconstruir em palavras a memória deste lugar. Que outro animal o faria ?

Se calhar somos mesmo filhos de Deus ou trôpegos aprendizes para a criação de mundos. 

13/06/2019

Margem

É por aqui que me perco
para encontrar musas e anões dourados.

Agora, anónimo e transparente
sei afinal onde estou e sou realmente.

E sem nada pedir, tudo me é dado outra vez,
como se regressasse ao silêncio uterino.

Os pés levantam-se um pouco acima do chão,
onde já não há terra, onde não agarro ainda o céu.

Os sinos tocam chamando de longe,
o que está perto, interior.

Falta-me aqui o vinho, mais pão,
um ombro talhado para o meu ombro.

Ainda assim estou do lado de cá,
no lado de dentro.

Rente à fronteira ambiciosa das coisas
e do caos que cresceu com o fim das estações,
ando pela margem da alegria
e finjo que não tropeço.




02/06/2019

À vela

Com a segunda mão, agarras o leme
da penúltima barca do rio.

Segues à bolina contra os anjos do desejo.

A montante, a memória.

A jusante, aquele mistério que se adensa
no olhar tenso dos gatos
quando  fixam o nada.

As velas enredam-se na história
e a barca pára.

No casco,
acumulam-se as chagas típicas do marasmo.

Os caranguejos trepam à gávea, mudos.

Baixas a âncora
até à profundeza estelar.

Pelas narinas secas,
arribam breves lembranças de salsugem.

Com os maxilares dormentes
de tremor, desembarcas
e, de calça arregaçada, caminhas
sobre  rochas e  limos ternos
até à praia onde por hábito terminas a viagem
antes do poema.