31/12/2019

Agitação

Era um homem humilde submetido pela lembrança da fulminante mercê do destino. Não era bem um homem, era uma árvore contemplativa. Os pássaros e as cigarras confiavam nela há muito tempo.

Tinha a imobilidade da paciência, do guerreiro repousando entre batalhas, do cavalo que pasta e corre depois para ganhar algum avanço ao tempo.

Certo dia uma gaivota cruzou-lhe o olhar e ele quis voar também.
E tudo tremeu numa ansiedade inaudita expandida em ondas pelo universo adentro.
E a Lua já não era a mesma. E a árvore deixou cair alguns ramos. E as formigas pararam e soergueram as cabecinhas reluzentes para ver o homem que não tinha peso.

Quando o homem não voou, afinal, o mundo já não era igual e o mistério adensou-se na mente dos sábios, na alma dos poetas, na melodia das aves e todos os cantadores.

Por isso o homem lembrou-se do destino e caminhou sem fome, sem ossos, outra vez humilde e devoto aos seus passos lentos e naturais, tentando não levantar demasiada poeira do velho caminho. Por que essa sim, insignificante e inorgânica, voava, voava em bando e com destino incerto como ele outrora desejara.



24/12/2019

Star Wars

Viste o drone
no Parque Municipal 
- e talvez por causa da saga imortal
da Guerra das Estrelas-
acertaste-lhe com uma pedrada na lente.
Soube-te tão bem.
Mas fizeste mal.
Os drones podem vigiar os fogos,
disseram há dias na televisão. 

07/12/2019

Na despedida da irmã Júlia

No velório da irmã Júlia Leal cantou-se e rezou-se. Saí da capela cansado, mas com um sentimento até aquele momento desconhecido e escrevi:

0,03 é a probabilidade da fé absoluta. Aquela que nos transporta a alma para uma morada eterna. Ontem, enquanto nos despedíamos da irmã Júlia,  entre orações e cânticos, intui essa ínfima hipótese. Podem dizer-me que é escassa, da ordem das centésimas, sem chegar sequer às décimas. Mas o que  interessa é: esse ponto de luz na escuridão irrespirável do oceano; essa melodia inaudível que faz dançar alguns a que chamamos — sem razão ou interesse — de irmãos na esperança.  

21/11/2019

Queluz

De tempos em tempos, percorro as ruas de Queluz à procura de sensações, de lembranças, das pessoas. É triste e bonito ao mesmo tempo. Apetece-me colocar uma cadeira no passeio e ficar apenas a olhar o tempo. Como se tornaria excêntrico um homem ali sentado a olhar os edifícios, os transeuntes e as cores que mudaram, apenas me restava escrever:


Convoco um a um os meus fantasmas.
De tão íntimos podia chamá-los por um número apenas,
em vez do seu conhecido nome.
Sento-me na rua - onde mais poderia ser ? -
e trago cadeiras para todos.

Daqui a nada, levantar-me-ei para partir.
E eles ali ficam eternos à espera da minha última palavra:
aquela que enche a boca de pedras,
aquela que amarrota a garganta,
aquela que esvaziará mais uma cadeira.

25/10/2019

Sol Invictus, por enquanto


Na fotografia da gata ao Sol, as sombras são  tão  vizinhas que permitem só um fio de vida.

Ali, partir é quase chegar. E nesse adequado intervalo resta um caos de luzes visto de dentro, um calor quieto e vulgar visto de fora.

24/10/2019

Futebol sénior

Ainda sentes o jogo?
Estás cansado 
e a bola pesa uma vida de chumbo.
Nem penses em correr com ela.
Chuta-a para a frente com força. 
Alivia por instantes a angústia de perder.
Respira enquanto o destino te  prepara um novo cerco líquido. 


14/10/2019

Vida recolectora

Escuta-se o cansaço do carnívoro a digerir a presa. Foi dura a caçada - cheia de sprints e respirações invulgares, consequentes da lembrança da fome e, em parte, do esquecimento do vinho novo. Esse mesmo que brota e se recolhe nas bolsas lacrimais das virgens vestais do Templo do Imperador.

Recuperado o fôlego, saímos em corrida na peugada do alce até o deixarmos sem saída.

07/10/2019

As visões do invisível

Parece-me evidente que cada cultura cria a sua visão de Deus. Esta visão, tendo um primado teológico, cresce em todos os vetores artísticos: na música sobretudo,  mas também na pintura, na arquitetura,  escultura, literatura - em suma numa camada estética que nos aproxima da presença
do sagrado.
Vivaldi, compositor não reconhecido durante a sua vida, compõe "Nisi dominus" como se quisesse provar que os critérios dos homens e de deus são tão díspares no que diz respeito ao reconhecimento.

01/10/2019

O convite

E se tudo não servisse para nada ? E se as manhãs fossem apenas manhãs sem qualquer desígnio por mais ínfimo que ele fosse ? Talvez não queiramos aceitar o vácuo que representa a nossa existência.
Não! Nada disto é verdade.
Tudo o que fizemos serviu um desígnio superior:  os filhos, os beijos, as balas, as caminhadas ao fim da tarde ou logo pela manhã entre o frenesim esfomeado das aves.
Não sei então porque ficamos ansiosos quanto ao sentido das manhãs? Talvez tivéssemos recebido um convite e não o tenhamos aceite completamente. Como aquele que Jesus endereça ao jovem rico para o seguir e que este não aceita, preferindo ficar na segurança das suas riquezas e das suas posses. Talvez, seja a melancolia desse convite não aceite que se vai repetindo diariamente que nos deixa assim - de alma vazia.

29/09/2019

Da praia

E se a praia fosse um altar?
Lugar sagrado para a transubstanciação entre o real e a ilusão ou simples beijo na boca do nosso desejo ?

27/09/2019

Nuvens negras

Hoje acordei e, olhando o horizonte, vi que estava com algumas nuvens negras. Depois pensei que talvez a sua escuridão não fosse um sinal de temor, mas de esperança e escrevi:

Ao fundo
as nuvens negras
podem não ser um mau presságio.
Mas apenas a promessa,
a vida iminente,
o início do início
dando o baptismo aos vales,
e aos homens, seus leves entes
intermitentes e, porque se esquecem,
espantados
com a simplicidade outonal

24/09/2019

O rabiruivo

Salta intrépido nas traseiras do prédio. É um rabirruivo, pequena ave escura e singela, com uma cauda laranja  que se agita amiúde de cima para baixo.
Não há gato que o cace, nem carro que o assuste. Para mim, passarinho,  tu és o pequeno crisol do ouro dentro da minha solidão, o buraquinho por onde a luz me visita nesta cela de betão.

O teatro de um povo

"A medida da grandeza de um povo está no seu teatro. O que significa que vamos encontrar decerto o teatro verdadeiramente representativo de uma nação naquela época em que a sua civilização mais livremente se estiver desenvolvendo; e que vamos encontrar nesse teatro dessa época o que há de mais líquido nas características espirituais da nação" - Agostinho da Silva em "Reflexão", pág. 54 - Guimarães Autores

27/08/2019

Mirabe judaíco-cristão



A Andaluzia foi um espaço ocupado por diversos povos e civilizações. Entre estas últimas, podemos realçar uma forte presença e influência de Roma, Islão e Judaíco-Cristã. Apesar de não ser uma das regiões autonómicas mais economicamente desenvolvidas, tem uma grandiosidade que se expressa nas suas raízes culturais. A  arquitectura, a pintura, a literatura, a  música, as  tradições dão-lhe um valor impressionante. Ao visitar a mesquita-catedral de Córdoba fui surpreendido por um mirabe -uma abside, com a função de indicar a direção de Meca aos orantes. O mirabe está representado pelo arco árabe no desenho que compus e que aqui vos apresento.

Na judiaria de Córdoba, visitei o museu judeu que me embrenhou na vida judaica medieval daquela cidade, onde viveram sábios como Maimónides (médico e filósofo judeu) e Averróis (juíz, médico e filósofo). Nesse museu, encontrei na sua loja, um fio com uma medalha cujo símbolo em hebraico significava "Vida". Esse símbolo representei-o no centro do triângulo (retina de um olho) do desenho.

O terceiro símbolo do desenho é um triângulo que enquadra um olho, ou seja, o "Olho da providência". Esta representação tão comum na decoração dos templos cristãos significa o olho de Deus que tudo vê.

Tentei neste desenho-estudo integrar vários símbolos que representassem essa miscigenação civilizacional que encontrei em Córdoba. Nesta cidade - à semelhança de tantas outras, onde existiu tolerância religiosa durante o domínio árabe (Séc. VII - XIV) - as três religiões abraâmicas   coexistiram em paz. Este Deus sem nome  ( referenciado como Javé no Antigo Testamento e que significa "Eu sou quem sou")  é comum às três religiões, deixando-se entrever, no espaço cultural andaluz, por uma consciência sensível à história ibérica e aberta a um espaço ecuménico . 

Evocação de um mirabe

Olho de Deus.

Porta das almas.

Parede avessa do infinito.

Boca dos que oram para dentro.

Miragem convergente dos que comem o criador.

Rio vivo e clamoroso, que num silêncio indiscreto, 
faz ranger a porta perra do mistério.

Cântico das fontes fieis
cujas águas serpenteiam ininterruptas
as colinas de Granada.

Aragem cálida dissolvendo a vontade humana
numa cisterna sem fundo.

Sopro agitando as teias
que seguram eternamente os ossos do coração.


Nota:  Mirabe ou Mihrab (em arábe) é uma abside dentro de uma mesquita, com a função de indicar a direção de Meca aos orantes. Escrevi este poema em Granada, no bairro Albaicín, depois de ter visitado a mesquita-catedral de Córdoba, onde contemplei um magnifico mirabe e compreendi a sua função dentro do templo.


02/08/2019

O viajante

Segues curioso
um atalho fronteiriço ao espanto
e ao exotismo do que nunca hás-de ter

Alivias-te dessa dor que tanto te cansa

Entregas o peito às balas   traças brancas
que no caminho da noite atravessam teu raio de visão

Já nada  é sereno
a não ser o reflexo da lua no dorso dos cavalos
que pastam ainda pequenas rosas pelos campos

O resto são animais agitados por dentro também

Nada substitui o  leito quente e materno
mas tu insistes na estrada como alívio da dor


Viagem a Andaluzia e Sotavento Algarvio em Agosto de 2019

30/07/2019

Como Lorca

Recorrentemente, regresso a García Lorca, à Andalucía, a um som de guitarra e flamenco. Fico toldado pela sua leveza e liberdade e não consigo impedir que a sua poética se entranhe. Sus gacelas, poemas de amor com uma estrutura de origem árabes, são muito bonitas, quase cantabilis. Assim escrevo eu como se fosse Lorca:

Tudo é derradeiro
Não há último, nem primeiro
Tudo é frágil e suspeito
E homem nenhum suspenderá 
O vento que embala as árvores
E as faz cantar como loucas
Nem a chuva que me traz à boca
Os novos rebentos do teu semblante
Recortado numa língua de água e fogo

De quem são estes campos de centeio ?
De quem são estes peitos de rola e giz ?

Ai, Ai, Ai, Ai...se o quis, porque o não fiz
Ai, Ai, Ai, Ai...se o cantei, porque o não disse
Bastavam palavras, 
Palavras  de gesso e firmamento
Palavras de riachos e aloendros



22/07/2019

Ler

Leio, ó que prazer, como se vivesse vidas infinitas ou uma infinita vida. Leio como se a própria vida fosse água a correr entre as pedras, peripécias calcárias de personagens insustentáveis ao sol de julho.

O tempo abranda sempre que o livro se abre e prepara o voo. Coloco os óculos de mergulho e, agitando as pálpebras, percorro as palavras-corais. Logo a realidade foge como um cardume assustado pelo rumor crescente da fantasia.

Humildemente, peço tudo. Ambicioso, não peço mais que nada. Nada mais que a mentira verídica.

04/07/2019

Natureza humana

Afinal somos filhos do erro sublime
e da máquina resplandecente.
Sábios e dementes.
Em mistério, entramos, vida a vida, rio adentro.
Casualmente, perguntamos pelo milagre do início
e pelo castigo do fim.
Nada.
A mais pequena coisa, impele-nos a este caminho surdo ou mudo.

E neste silêncio, os mais capazes contemplam apenas.

30/06/2019

O eucalipto

Passei pelo sítio exato  onde os meus avós viveram. A casa desapareceu há muitos anos atrás. Também já não vejo o grande eucalipto que lhe dava abrigo e enquadramento. Apenas o imagino como um foguetão, um cipreste dos cemitérios pronto  a descolar rumo aos céus numa noite qualquer, estrelada de preferência. Agora, resta apenas um prado de ervas altas, onde as carriças fazem os ninhos e criam a prole.

Ainda assim venho aqui sempre que posso, como aquela cria de veado que não se afastava do resto da carcaça da mãe, devorada por uma alcateia de lobos. Vi isto num documentário da National Geographic, gravado no parque natural de Yellow Stone e nunca mais o esqueci.

Felizmente, consigo reconstruir em palavras a memória deste lugar. Que outro animal o faria ?

Se calhar somos mesmo filhos de Deus ou trôpegos aprendizes para a criação de mundos. 

13/06/2019

Margem

É por aqui que me perco
para encontrar musas e anões dourados.

Agora, anónimo e transparente
sei afinal onde estou e sou realmente.

E sem nada pedir, tudo me é dado outra vez,
como se regressasse ao silêncio uterino.

Os pés levantam-se um pouco acima do chão,
onde já não há terra, onde não agarro ainda o céu.

Os sinos tocam chamando de longe,
o que está perto, interior.

Falta-me aqui o vinho, mais pão,
um ombro talhado para o meu ombro.

Ainda assim estou do lado de cá,
no lado de dentro.

Rente à fronteira ambiciosa das coisas
e do caos que cresceu com o fim das estações,
ando pela margem da alegria
e finjo que não tropeço.




02/06/2019

À vela

Com a segunda mão, agarras o leme
da penúltima barca do rio.

Segues à bolina contra os anjos do desejo.

A montante, a memória.

A jusante, aquele mistério que se adensa
no olhar tenso dos gatos
quando  fixam o nada.

As velas enredam-se na história
e a barca pára.

No casco,
acumulam-se as chagas típicas do marasmo.

Os caranguejos trepam à gávea, mudos.

Baixas a âncora
até à profundeza estelar.

Pelas narinas secas,
arribam breves lembranças de salsugem.

Com os maxilares dormentes
de tremor, desembarcas
e, de calça arregaçada, caminhas
sobre  rochas e  limos ternos
até à praia onde por hábito terminas a viagem
antes do poema.




31/05/2019

31 de maio

Está calor. As carnes das pessoas começam a revelar-se como o miolo que rompe a casca da fruta. Os dias parecem mais felizes, mais luminosos. Há sorrisos em algumas caras outrora tristes. Troco os frequentes bons-dias enquanto subo a escada. Há uma espécie de conflito tácito, nos jovens e em mim, entre estar ali e não estar noutro lugar. Tivemos a bênção da vida, mas a ganância pede-nos sempre mais. Que o sol traga a humildade e a gratidão. Só assim a alma confusa  descansará. 

30/05/2019

Cantiga do nada

Estação da CP do Rossio (Linha de Sintra, 2019)
Não sabemos nada de memória, nem do amor
Não sabemos do nada, nem do tudo, do antes ou do depois
Não sabemos de Deus, quem o arrumou e em que gaveta
Não sabemos quem fomos, somos ou seremos
Não sabemos dos mortos, nem dos vivos, nem de nenhum outro estado intermédio
Não sabemos dos filhos, nem dos pais, muito menos do Espírito Santo
Não sabemos construir, nem destruir, por isso vivemos entalados entre coisas
Não sabemos que coisas são, não podemos dar-lhe um nome efectivo, nem afectivo
Não podemos explodi-las para as reconstruir

E era tudo tão simples e acessível
Era tudo tão nosso e deles

E agora não sabemos nada, nada

22/05/2019

O círculo

O tempo intemporal
É que é o verdadeiro tempo

Esse lugar  imprevisível
Onde o Apocalipse copula com a Génese

21/05/2019

Notre-Dame de Paris

Sobre o recente incêndio da catedral parisiense,  constatou-se a comiseração de muitos ateus e agnósticos nos diversos meios de comunicação. Entendo o subconsciente que os liga ao simbolismo daquele templo, mas não deixo de notar alguma incoerência com a sua  linha de pensamento. Enquanto,  simbolo matricial da cultura europeia, a Notre-Dame era para a maioria dos pensadores, um local de turismo histórico e pouco mais do que isso.Agora que eventualmente a conseguiram imaginar como eliminada,  a angústia levou alguns deles a partilhar a sua consternação. Contudo, para uma certa ideologia paganizada e moderna o incêndio de Notre-Dame começou no iluminismo e mesmo antes do recente acidente apenas restavam algumas cinzas. Nietzsche teve  a coragem de anunciar a nossa traição e procedente mal-estar.  O racionalismo terá sempre limites, assim como a apropriação empírica da realidade. Para além e aquém, fica o mistério. Para os que eregiram Notre-Dame,  o mistério da Virgem, mãe de Deus. 


"Nietzche, um grande solitário, situa-se no ponto de partida da corrente ateísta. Este filósofo quis pôr termo à era evangélica anunciando a morte de Deus aos homens que não ousavam assumir essa morte, depois de a ter executado.

  Tal como Kierkegaard, Nietzche devia esperar, para ser ouvido, que o desespero se inscrevesse nos corações desolados com a morte de Deus e desiludidos com os mitos de substituição.

  Dir-se-ia que surgiu um novo estoicismo em que o homem é exaltado no seu confronto com uma solidão fundamental". (Mário Ferro & Manuel Tavares em "Conhecer os filósofos de Kant a Comte", Editorial Presença (1991). Lisboa.)



Mas alegrais-vos, irmãos, porque Nossa Senhora, mãe eterna e humilde, está connosco agora e na hora da nossa morte, amén.

19/05/2019

Um cão sem pensamento

O cão agita a cauda,
marcando o compasso
da sua alegria. 
Olho-o de soslaio.
Feliz, ladra e abana-a.
Pudesse eu ser tu, sendo eu.
E com a cauda enxotar os pensamentos.
Porque para o homem que pensa:

domingo é já segunda-feira;

o princípio traz o fim;
e o sol que o abraça
é um  poente pressentido.

08/05/2019

Antes da Páscoa

Antes da Páscoa
sou carbono sem asas
sem chefe sem esperança
que ultrapasse o fim do mês

Três mastins à porta
e uma mulher na cozinha
são insuficientes para ressuscitar
o cadáver disperso pelo quintal

E quando subo as escadas de incêndio
ouço ranger os degraus
e fico estático inerte
folha caída num jardim público
naqueles dias sem vento

Antes da Páscoa

28/04/2019

I am currently Out of the Office

S. - Olá, J 

J - Tudo bem, S ?

S. - Sim.  Tive uma epifania.

J - Então ?

S - Uma revelação, sei lá, transcendental. Estacionei longe. Eu não evoluo, pá, viajo. (ris-se) Enquanto caminhava para cá ouvi o melro, entre os barulhos dos carros e destes aviões que parecem que vão aterrar no Rossio. O gajo está apaixonado outra vez e não quer que a mulher saiba. Por isso assobia aquela canção dos Beatles. O Blackbird.  Depois passei pelas pessoas na avenida e cumprimentei apenas a árvore. É tão simpática e disponível, parece aquela velhota lá do prédio. Entrei no escritório, vi os colegas, mas abracei a planta do hall do escritório. Está mais alta.

Sabes o que percebi, J ?



Que afinal não estou louco.

(Toca o telefone)

S. - Bom dia. doutor. Subo já, Doutor. (Falando com o j.) O K quer falar comigo.


(K. mandou-o chamar, como se tornara hábito. S. bateu à porta e pediu para entrar como se fossem desconhecidos ou dançassem um ritual de poder.)

K. - Entre, entre, S. Como se tem sentido ?

S. - Razoalvelmente assim assim.

K. -Você é boa pessoa.

S. - Obrigado.

K. - Até o considero um homem inteligente.

S. - Obrigado, senhor K.

K. - Mas não é MALUCO !

S. - Como disse, senhor K. ?

K - Disse e volto a dizer-lhe: Você é  maluco.

(S. encolheu os ombros e olhou-o com um misto de medo e compaixão.)

K. - Nós não podemos ter nas nossas equipas um maluco, como deve compreender ?

S. - Não podem (desconfiado) !? Está bem...está bem.

K. - Você não grita com os outros.

S. - Com quem ?

K. - COM OS OUTROS! Chiça que é surdo.

S. - Já gritei, mas só em casos extremos, realmente.

K. - Um chefe tem de ter uma postura de chefe.

S. - Uma máscara, uma espécie de mania ?

K. - É mais ou menos isso, S. Vê como  reconhece a sua fraqueza. Você não está bem, não está bem, não está bem.

S. - De facto, não tenho muito a mania. Tenho-me esforçado bastante para armar-me em bom, mas passado algum tempo esqueço-me e volto à humildade e à cortesia.

K. - Admita S. que precisa de ajuda médica. Tem tomado a medicação ?

S. - Tenho, sim, Sr.K, É a única forma de me aguentar.

K. - Você não tem perfil. Já me tinham avisado, aliás. Não vê a forma vingativa  e desconfiada com que os outros se olham entre eles, ou berraria machista que fazem ou histerismo da Sra.F ? Aquilo é profissionalismo, só um bom profissional consegue chegar a qualquer destes estados. Você aje de forma natural às coisas, homem. Como pode mudar ou dirigir as coisas com naturalidade e delicadeza ? Hã...Diga-me? Não consegue imitar pelo menos  a frieza emocional do Sr. T. ?

S. - Eu faço tudo o que me pedem. E muitas vezes tento ser empreendedor. Fazer para além do que me pedem.

K. - Faz o que lhe pedem....Lá está...Pedem e você faz. Não percebe... não percebe... que não pode fazer o que lhe pedem ? Nem acreditar em tudo o que lhe dizem.(Pausa). Nem dizer o que pensa. Nem ser verdadeiro...seja lá o que isso fôr. (Pausa) Quanto quer ?

S. - (fazendo parece não perceber) Quanto quero para quê, Sr. K. ?

K. - Você é boa pessoa, S.

S. - Não me faça chorar, Sr.K. Eu sei...eu sei...

K. - Não julgue que nós lhe vamos montar armadilhas ou conspirar nas suas costas para ...

S. - Nunca me passaria uma coisa dessas pela cabeça, Sr. K.

K. - Isso nunca. Nunca ouviu. Os nossos valores estão acima disso.

S. - Claro, Sr. K. Eu sei disso. Tenho ouvido discurso a discurso, intervenção a intervenção, todas as suas palavras ao longo deste anos  e sei disso muito bem. Que outros valores, vos movem.

K. - Tenho uma reunião às três. Vou ter de sair.

S. - Até amanhã, Sr.K.

K. - Até amanhã, S. As suas melhoras...sinceramente.

S. - Obrigado, Sr.K.








Os pássaros de Ruy Belo

Os teu pássaros
eram pedras quentes arremessadas
contra a folhagem das árvores

Daquelas onde os frutos
nascem e crescem das raízes

Têm a forma de bússolas
ansiosas para nos guiar ao mar
onde a maré leva e traz a sombra da mão
que com a areia nos modela e depois nos arrasa
como coisas sempre brandas e amarelecidas
incapazes de resistir à salmoura fria da natureza 

18/04/2019

7 haikus do bosque




















Nada fala mais baixo
que o cogumelo castanho
Ele é o segredo do bosque

Pergunto ao bosque porquê
Nenhuma erva o sabe
Quietas crescem com a manhã

A abelha pula entre flores
não há passado ou futuro
apenas pétalas de distância

O charco reflete o céu
tem saudades, eu sei,
de quando era pingos de chuva

Há séculos o caracol avança
Já nem sabe porque partiu
A viagem é o  destino

Pastam pombos pelo trilho
Aliança feliz com os homens
que partiram pensativos

Fertilidade, dor e desejo
escrevem as marcas na oliveira
Tagarelam as mais velhas



11/04/2019

Macbeths

Quando pensei na influência excessiva que algumas mulheres exercem sobre os maridos, lembrei-me de um clássico shakespeariano e escrevi:

Com vinho e sangue
se conspiram bodas
entre Marte e a Lua

Os egos rompem
a película da sombra

E logo pela manhã
montam negros corcéis
rumo ao destino do homem-cinza

08/04/2019

Baptismo

Começou a tarde, no Bar Britânico no Caís do Sodré. Comprei um moleskine e uma caneta nova com aquela ponta de diâmetro estreito que tanto gosto, pedi um digestivo e iniciei o livrinho assim:

Aqui baptizo
o registo das espúrias
tardes caídas
na tentação da imortalidade

Não há por aqui fontes
incrustadas à sombra das árvores,
nem caminhos escondidos
por  entre a vegetação pura
dos primeiros poemas

Apenas por aqui passa
um sentido desmazelado
pela pressa de viver,
a última economia dos defuntos
e uma orgia imatura
tatuada nas ruas quase sujas
(mas redimíveis) da velha cidade

03/04/2019

Carta a um jovem poeta

Escrever poesia é antes demais uma necessidade, seguida de uma fruição pessoal. Depois, porque ninguém é perfeito,  surge a necessidade de reconhecimento ou, em casos especiais, da partilha da mesma. É como uma paixão: primeiro sofres, depois gozas o amor e se este  amadurecer a tal ponto que o aches digno de o tornar um modelo, uma referência ou apenas uma longa história de amor eterno, resolves contar aos outros que afinal é  possível duas pessoas sentirem aquilo. O mesmo se passa com os poemas, em ciclos temporais mais curtos, porém.

27/03/2019

Dia Mundial do Teatro


Primeiro era o verbo. E para o articularmos criou-se a sintaxe, a semântica,  a ortografia, a gramática.  Porém, nada tornou a palavra tão precisa, relacional e intencional como a voz humana. A arte que sublima esse artifício chama-se Teatro. Hoje é o seu dia mundial. Muito obrigado,  amigo Teatro.

23/03/2019

Perpétuo olhar

                                                         ao Duarte Belo

Tudo é novo quando de novo olhas

como se uma claridade atrevida

iluminasse a gruta esquecida 

e retocasse aqui e ali 

com enlevo e espanto

a maquiagem das pedras

que jazem prematuras

 na lembrança dos vindouros

20/03/2019

Primavera tardia

Deito-me ao sol, indiscreto. Reajo sem pudor aos transeuntes. Sou um resto lançado à praia
pela juventude serôdia que me assola, como um copo de vinho entornado sobre alvura de mundo.

Escuto-me assim por dentro, sem remorso de mim mesmo.  Estou cansado. Andei por ai meio século  e só por que uma breve brisa se levantou, acho que devo regressar mais cedo à vossa noite.

19/03/2019

Viagem

Há um instinto que se torna chão

Caminhas sobre ele

e as imagens que ficam para trás tornam-se opacas



Tentas o latim e o esperanto,

enquanto aguardas um sinal

que traga o transcendente às tuas mãos



Mas só um mendigo,

que atira pão aos pombos,

ensina-te a urgência da respiração

11/03/2019

Segunda-feira de cinzas

O tempo chama-nos às vezes para conversar: 
memórias,  esperanças, lágrimas,
acabamos por lhe dar razão.
É então que deixamos de  ouvir ressoar os seus argumentos
no labirinto inquietante dos caminhos por onde não fomos.

13/02/2019

E se viver não bastasse

E se viver não bastasse à poesia
Haveria ainda na encruzilhada
Dos caminhos para a fantasia
Aquele que me leva à mulher amada

E só de outras musas eu falaria
Se ao olhar o mar, teu rosto não visse
Avançando entre as brumas da maresia
Ao encontro na praia da nossa meninice

Onde nua corres no encalço das aves
Que leves e lentas partem para sul
Sem pressa nenhuma, desdém ou entrave

E se viver não bastasse à poesia
Bastaria este enlace de verde com azul
Que são teus olhos enchendo  minh'alma vazia

30/01/2019

O instante absoluto

A atenção que devemos ao mundo tem uma dimensão impagável.  A melhor solução seria cada um nós escrever, durante toda a vida, apenas um poema sobre uma ínfima parte  da realidade observada. Assim mesmo, tornar-nos-iamos todos absolutos mestres de um segundo apenas. Entenderiamos finalmente a sábia eternidade do instante.

27/01/2019

A ideia

No trilho da mata, a luz estilhaçou-se em pequenas folhas. O som intensificou-se uniforme até ao limite de se tornar um silêncio novo. E até o frio congelou os cheiros, os odores da madeira. 
Apenas a palavra resistiu portável de lugar para lugar, consentida de século em século. A palavra pensada trazia na sua transparência inodora e insonora a semente da ideia. E com ela podemos  evocar de novo a memória dos sentidos.

Mata da Matinha
Queluz, janeiro de 2019









24/01/2019

A pluma

"E como voam os pássaros?",
 perguntas.

Se as pontas enquistadas
dos teus dedos
afagassem com volúpia
a primeira pluma do lagarto,
saberias.

16/01/2019

Subjugação

A aspereza da vida é interromper "O Vale Abraão " do Manoel de Oliveira por estar na hora da fisioterapia. São estes momentos que reforçam a subjugação do espírito às leis da condição animal.

09/01/2019