29/12/2017

Que 2018 seja um tigre que espante

Quem tem medo do espanto ? Num mundo apressado, intenso de imagens e de sensações vagas, é preciso reaprendermos a espantar-nos.  Quando nos espantamos, a vida corajosa e vibrante regressa da infância aos nossos corações e sobressalta-nos de verdade.

 Foi esse impulso vital que encontrei neste postal da autoria da ilustradora Marina Palácio que complemento com um extrato de um poema do poeta místico inglês, William Blake, o qual não pude deixar de registar aqui.

Ilustração de Marina Palácio
"Tigre, tigre que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?"


"Tiger, tiger, burning bright,
In the forest of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?"


Extrato do poema "Tigre" de William Blake

27/12/2017

A tela de Pénelope



Enquanto espera que Ulisses, seu esposo, regresse da guerra de Tróia, a bela Penélope vê-se assediada por inúmeros candidatos ao lugar deixado vago por ele. Penélope quer esperar por Ulisses, mas sabe que ao rejeitar os candidatos, ao lugar dele, sem um bom argumento, ganha inimigos e perderá a esperança que ela mesmo alimenta. Assim exposta ao risco de ser obrigada a casar de novo pelo seu pai, Ícaro,  Penélope começa a bordar  uma tela para o caixão de Laertes, o seu sogro  que entretanto morrera. De dia borda a tela e de noite desfaz o que bordou. Com o argumento de bordar um artefacto tão sagrado, não há candidatos que se atrevam a pedi-la em casamento. 

Engrandece-nos com a graça da humildade


21/12/2017

A história de um cão que dava um pequeno conto de Natal

Conheço um cão há muitos anos, desde cachorro. É uma daquelas raças apuradas para amarem os homens. Não ladram aos ladrões, não mordem e por mais maltratados que sejam perdoam sempre. Ontem reencontrei esse cão. Estava sozinho em casa. Os donos separam-se. Cada um seguiu o seu caminho, os filhos cresceram e o cão ficou sem dono de verdade. Os donos alimentam-no , dão-lhe cuidados de supermercado, como ossos de substâncias processadas para os dentes, passeiam-no todos os dias, mas  é como  vos dizia, aquele cão pertence a uma raça apurada para amar o Homem. Se ele fosse um lobo, não teria hoje aquele problema da solidão, porque para um lobo a solidão às vezes faz sentido. Agora, para ele, não. Ele sofre de uma imensa solidão, porque quer amar e como cão que é, não consegue criar simulacros de amor, não consegue amar em abstrato, fazer poemas ou simplesmente escrever cartas de amor. Amar para aquele cão, é brincar, correr, tocar e cheirar coisas novas e surpreendentes. O amor para ele é abocanhar-nos os braços,  levar chapadas e ralharetes,  correr para apanhar o pau que lhe atirámos, mas passa os dias sozinho, a querer amar e não tem a quem. Ontem, depois de um passeio que fizemos, ele - que sempre mostra  aquele ar jovial, alegre, quase desmiolado - confessou-me a sua profunda solidão. Depois de umas correrias, fugas, mijadelas e caganças, o sol pôs-se. E como dois amigos, no final de uma aventura alucinante, ele encostou o seu focinho nas minhas pernas. Tinha por momentos recordado, o que é para ele o amor, a vida verdadeira, o que ele gosta mesmo de fazer. Ficou nostálgico, melancólico. Disse-lhe, olhos nos olhos  - os dele estavam cerrados, como quem lembra algo distante e ideal - que o entendia, que sentia a sua solidão como se fosse a minha, porque no fundo também eu era um animal ensinado para amar - é isso que recebemos dos nossos pais nos pueris anos da  nossa vida - mas que felizmente ainda me sentia amado. "Entendo-te", disse-lhe. "Entendo a tua profunda solidão". Ele ficou mais aliviado com a minha comiseração. Foi um momento intenso. Três segundos fortes. Depois brincámos mais um pouco. Ele foi buscar a bola. Eu atirei o pau para ele ir buscar mais duas ou três vezes. Depois fui-me embora. Fechei a porta do jardim. Se eu soubesse que ele se podia tornar outra vez um lobo, teria a deixado aberta, ainda que me seria difícil explicar aos donos a hipotética decisão. Mas eu sabia que ele jamais seria um lobo. Como eu jamais serei um homem incivilizado. Afinal nós que temos tanta coisa, amigo cão, é pena que nos falte, às vezes ou tantas vezes, o amor do outro e a floresta.

17/12/2017

O regresso


               ao Izidro Alves

Amplo
por dentro e fora
desambiguo
o homem regressa em correria
como se fosse um vento
enredando os tojos e as giestas
 na subida da serra.

Lá em cima, ou lá em baixo
— que importa a altitude
quando estamos perto de casa —
os sinos já não dobram a finados.
Agora  repicam  as bodas entre ele e ele:

É Natal outra vez.


13/12/2017

O que caminha, quando caminhamos ?

Hoje uma pessoa muito especial para mim, escreveu entre as várias frases de um email que me dirigiu: "A vida segue o seu caminho com os nossos passos". Encontrei nela tantos e férteis significados que decidi guardá-la aqui. Como se este blogue fosse a caverna do Ali Baba e dos quarenta ladrões de frases.

03/12/2017

Deus é a nossa mulher-a-dias de Adilia Lopes

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa

Adilia Lopes em " Florbela Espanca Espanca". Editora Black Sun.Coleção: Impossible Papers.