21/04/2017

Testemunho de um peregrino por alturas do Pesah


Era ainda criança, quando vi o nazareno, na estrada da Galileia, repetido no pó magro que mesmo desfocando anuncia. Caminhava entre uma turba de sangue borbulhante - mais tarde derramada sob as patas incoerentes dos leões.

"Não há pai sem filho." - pensei - "Não há filho que não amemos".

Eu juro que vi o nazareno no espelho fosco daquele pó tão leve que chegava ao céu, naquela carne interina que lentamente se transubstancia em palavras e verdade.

Na verdade vos digo, eu vi o nazareno e lembro-me disso muito bem. É como se o visse todos os dias, passando e  olhando-me, naquela estrada que vem de coisa nenhuma para o templo de Jerusalém.


Algures perto Jerusálem, 3 de abril de 33 D.C.



19/04/2017

O Homem Só

Quando olhamos para um fenómeno pela perspectiva sociológica, usando as ferramentas analíticas para estudar o caso, obtemos política, legislação e eventualmente transformação. Quando olhamos para um fenómeno e vinculamos a nossa atenção num indivíduo apenas, temos  literatura, emoções e drama. É de facto esta última perspectiva que mais me interessa: a ovelha perdida, a moeda reencontrada ou o regresso (ou não) do filho pródigo.

Se contarmos a história do indivíduo, em detrimento, da do grupo ou da classe a que ele pertence, talvez ele se sinta protegido, porque agora está visível e tentou-se compreendê-lo. Talvez narrar o seu drama seja o pequeno contributo para que o "Homem Só" perca aquilo que o filósofo José Gil chama de "medo de existir" no seu livro "Portugal, Hoje - O Medo de Existir"


12/04/2017

Crianças e animais - duas metáforas sobre a existência

Dois livros que falam de quando as coisas eram tão más e injustas que ao adaptarem-se a elas, as personagens cresceram e libertaram-se daquela forma  como só acontece nas histórias imaginadas. O primeiro livro chama-se "Capitães da areia" e foi escrito em 1937 pelo brasileiro Jorge Amado. Aqui um grupo de crianças sem família, nem lar fazem o que podem e não devem (ou será que devem?) para viver sem estas coisas. Na verdade, ninguém sabe viver sem elas, e por isso, aqueles rapazes reinventam um lar, uma mãe, um pai, um deus, uma causa comum para lutar.

O outro livro chama-se "O apelo da selva" foi escrito por Jack London, em 1903. Na consciência  de Buck, um cão arraçado de São Bernardo e Pastor escocês, London conta a aventura do cão de um juiz que vivendo num ambiente entediante e civilizado -  aparentemente justo e protegido - tem uma existência banal e digna. Mas mesmos os sítios bem frequentados têm as suas ratoeiras. Um ajudante do jardineiro do  seu dono tem o vício do jogo. Pior do que isso, vive na ilusão que descobriu um sistema que lhe permitirá enriquecer. A vida financeira do jardineiro não lhe corre bem, obviamente. E Buck é raptado e vendido pelo jardineiro a uma rede que angaria cães para puxar trenós. Descobriu-se muito ouro no Canadá, junto ao Árctico, onde começara uma corrida ao bem mais cobiçado do mundo. A neve e os trilhos gelados só podem ser percorridos por trenós puxados por cães de envergadura. A animalidade dos homens estimulada pela necessidade e ganância - uma fronteira estreita as separa - surpreende então Buck de uma forma assustadora e brutal. Os primeiro tenpos são de angústia. Buck sofre uma crise existencial derivada desta mudança. A bestialidade a que ele é sujeito, abala-o mas não destrói. Ninguém está suficientemente preparado para a selvajaria humana, nem mesmo um cão.

Buck leva então a  consciência até ao âmago da sua natureza, da sua ascendência de lobo. E quando a criação do Homem se junta à da natureza, nasce um herói, esse mito inspirador e platónico que não existe. Ainda assim Jack London cria-o de uma forma inflamada e sofrida como um parto difícil, inspirando-nos com a generosidade temerária deste Cão-Lobo / Homem-Animal,

Por debaixo da camada sociável e mansa do Homem, existe sempre esta pulsão primária que nos impele à violência como forma de resistir ao medo. A guerra é um exemplo acabado deste processo. Por isso, "O apelo da selva" é daquela literatura de sempre para sempre, um verdadeiro clássico que nos deixa este aviso: Não humilhem um manso e muito menos uma classe mesmo que esta seja tida como tal.



"O Apelo da Selva" de Jack London

 Tradução: Emília Maria Bagão e Silva
 Editor: Livraria Civilização Editora
 10,40 euros (Wook)



"Capitães da Areia" de Jorge Amado
Editora Bis
7,5 euros (Wook)














06/04/2017

Os prazeres e os dias

"Sombria dor dos céus de cinzento vestidos;
Tristes também, se azuis, nas tão raras abertas
Que deixarão então, nas planícies cobertas,
Filtrar os mornos prantos de um sol incompreendido"
De:Marcel Proust em "Os prazeres e os dias" (Trad. Luíza Neto Jorge) 

Alverca do Ribatejo - Foto minha tirada em março de 2017








05/04/2017

Perdi o telemóvel e achei uma bem-aventurada

Perdi o telemóvel. Quem o encontrou, não o desligou. Telefonou-me (um colega da achadora) para o telefone fixo, dizendo que queria entregá-lo ao dono. Fui buscá-lo. A pessoa que o encontrara tratava-se de uma africana, analfabeta e empregada da limpeza. Ao devolver-mo, disse-me:"Só lhe peço que faça o mesmo, se encontrar o  telemóvel perdido de alguém". Lembrei-me das palavras de Jesus, relatadas por Lucas, no Sermão da Montanha: "Bem-aventurados os pobres, porque será deles o Reino dos Céus",

Auto-Retrato (1992)