30/09/2015

Semper eadem - Baudelaire




De onde vem, dizeis, esta tristeza estrangeira,
Imparável mar entrando pela rocha negra e nua
- Quando o coração  já fez a vindima inteira
Viver é um mal, um tesouro guardado na rua,

Uma dor muito simples e afinal sem segredos,
Como a vossa alegria, que nos guia tão sábios.
Pare de indagar, ó infinda buscadora de enredos,
E, apesar da sua voz  bela, feche os seus lábios.

Cale-se, incauta! Alma sempre extasiada!
Sorriso vil, insurreto! Mais do que a vida,
A morte nos seduz com a sua voz adocicada.

Deixe o meu coração se inebriar em patranhas,
Afundar-se nos seus olhos, com ‘alma perdida
E adormecer eternamente sob as suas pestanas.



«D'où vous vient, disiez-vous, cette tristesse étrange,
Montant comme la mer sur le roc noir et nu?»
— Quand notre coeur a fait une fois sa vendange
Vivre est un mal. C'est un secret de tous connu,

Une douleur très simple et non mystérieuse 
Et, comme votre joie, éclatante pour tous. 
Cessez donc de chercher, ô belle curieuse! 
Et, bien que votre voix soit douce, taisez-vous! 

Taisez-vous, ignorante! âme toujours ravie! 
Bouche au rire enfantin! Plus encor que la Vie, 
La Mort nous tient souvent par des liens subtils. 

Laissez, laissez mon coeur s'enivrer d'un mensonge, 
Plonger dans vos beaux yeux comme dans un beau songe 
Et sommeiller longtemps à l'ombre de vos cils!"


"Semper eadem" das "Fleur du Mal" de Charles Baudelaire
Tradução para português de Luís Palma Gomes




29/09/2015

Onde param os loucos ?


Dar

Hoje dei um poema que escrevi a um casal amigo. Sobretudo, porque enquanto o escrevia, percebi que aquelas palavras e conceitos tinha algo a ver com eles.  Aprendi a oferecer poemas,  quando li a biografia do poeta grego Kavafis, que o fazia regularmente. Ainda pensei: "Será pretencioso ?" Hoje quando o entreguei, senti que não é. Senti também que só podemos dar qualquer coisa de valor, se essa coisa tem valor para nós.

Post Scriptum:  Outra dica para os economistas e materialistas em geral: Só há uma coisa que  dinheiro não compra, o verdadeiro afecto. Se assim for, já viram o valor que ele tem?

28/09/2015

Humidade

Nada melhor que a humidade na parede para exprimir a marca do tempo nos seus dois significados conhecidos.


1 ato

(Neblina.)

(Os cavaleiros chegam a trote.)

Druida: "Esperai!
que o tempo dos deuses cai naturalmente 
como uma pedra
malhando a superfície do lago.

Essa pedra que lhe agita 
uma inquietação centrífuga, quase plana,
molhando amiúde 
os pés descalços das ervinhas de Chamelot"

Coro: "Molhados, os pés da erva
movem-se para a esquerda 
e, sem saberem,
mudaram já a rota do mundo."

(Os cavaleiros saiem a galope.)

(O sol some-se também 
virgem e sem dote.)






24/09/2015

A timida loucura



Foto de Duarte Belo em CidadeInfinita.Blogspot.com



É preciso encher os pulmões  de  poesia  para atravessar, incólume, os lugares da desumanidade. 

Não há vita nuova sem risco.  

Será a tímida loucura, o gene que nos distingue ?

23/09/2015

"Quartos alugados" de Alexandre Andrade


"Entra-se num livro pela literatura, normalmente é assim, mas no caso do Alexandre Andrade as coisas complicam-se bastante. Além de Proust e Beckett, somos agraciados com naturezas-mortas e retratos, Charpentier e John Coltrane, Tondela e Paris, baguetes e bolas de berlim, luvas de pelica e gatos, Godard e (sem nunca ser mencionado) o espírito arisco de Jacques Rivette. O cheiro do café com bolos quentes antecipa-se ao efeito da escrita; dir-se-ia que a vida chega em primeiro lugar, e é juvenil e doce. As histórias crescem com delicadeza, as personagens envolvem-se em peripécias afáveis e levemente misteriosas, os gatos perdem-se e encontram-se — enfim, n’ Os Quartos Alugados respira-se uma atmosfera botânica. Roubando as palavras a uma das personagens: é tudo ao mesmo tempo conceptualmente simples, fértil e profundo. "

Texto extraído do site da Editora Exclamação

Bellum sine Bello

"Bellum sine Bello" significa combater sem guerra. Conheço alguns e algumas que o fazem. E que maravilhosa, subtil e humana é a sua arte de mandar. 

Sessão especial Ruy Belo - ‘Talvez um dia eu entre no cinema.’*


22/09/2015

A amizade e as nuvens voláteis

Um blogue é também uma caixinha onde guardamos coisas importantes, rezando para que a "nuvem" não se desfaça e leve, com ela, o nosso diário de bordo. 

Quando surgem necessidades surgem negócios. Para prevenir esta excessiva volatilidade que poderá ser, diria mesmo que vai ser, o mundo digital, existem empresas de serviços que imprimem os blogs e enviam para casa a edição encadernada do mesmo. Nunca utilizei este serviço, mas encontra-se como uma tarefa a realizar no futuro.

Voltando às coisas religiosas – no sentido em que nos religam ao outro e revelam a face do espírito santo – falemos de amizade. Ela é imprescindível para nos sentirmos realizados. Sem a companhia do outro, o seu reconhecimento e apoio, a caminhada torna-se mais árdua. Entre os amigos que tenho quero hoje falar da Marcela Costa – professora, pintora, dramaturga e uma alma grande.

Conheço os seus trabalhos relativos à escrita teatral - e porque julgo que a amizade não cega completamente –  considero-os a todos de grande valor: Stormy Weather”, “Summertime”, "September Song", “Duas Horas Antes”, “Grande Circo Real” e “O Natal do Gato Amarelo”.

Como ela mora no Funchal, costumo chamar-lhe Mar-Cela. Mas na verdade não há prisões que encarcerem a amizade, porque ela é não do mundo material.


18/09/2015

As primeiras chuvas

As primeiras chuvas cantam "pim-pim" como o chapim.


Elegia de uma noite após grande derrota



   














“Ó noite onde as estrelas mentem luz
Ó noite, única coisa do tamanho do universo” 

Fernando Pessoa




A noite vai ser longa e estéril
como uma banheira cheia de óleo queimado.
Insones, a vergonha e a derrota
vão marcar-te a fronte com sonhos em brasa

             Não há nada mais triste
             que escrever poemas aos 50 anos
 

À noite tudo será esquelético,
como um bosque há pouco abandonado
por um  bando de cabras esfaimadas
que comeram sem dolo as minhas verdes esperanças.

         
           Aos 50 anos
          só devia ser permitido escrevermos salmos messiânicos,
          mesmo que as mãos tivessem de se estender
          por detrás das grades

A noite será um cubo pequeno
e lá dentro
o meu corpo engelhado
sentirá finalmente
o quanto a verdade asfixia
se é feita de barro
e nos entra pela boca a dentro,
derradeira



17/09/2015

Tarab

Tarab (verbo em árabe) significa o efeito que a música provoca em nós. Não existe correspondente na língua portuguesa.




15/09/2015

Conforto

Não digo econometria, nem financiamento estratégico, nem progresso, nem ciência, nem nada que  inquiete. 

Digo conforto - mas jamais um relaxe qualquer - um conforto espiritual, é isso.


14/09/2015

Cada homem tem um caminho

Li, num filme, esta frase: “cada homem tem um caminho para Deus”.

Às vezes ficamos muito admirados, porque a nossa consciência pede-nos algo completamente excêntrico ou fora do habitual. Como seres gregários, temos tendência a recalcar esses desejos.
Em má a hora o fazemos, porque eles são, muitas das vezes, “o nosso caminho para Deus”.

10/09/2015

Triste consolo

Triste consolo,
enxaguar as lágrimas
com lenços molhados
de cansaço e desolos

Mas o sol regressa sempre
até ver
e, como crianças,
somos felizes a crédito
(mas com juros)

09/09/2015

sabes que não minto

sabes bem que não minto

mesmo na profunda masmorra,
agarrado a grilhetas bem temperadas,
sabes que não minto,

mesmo que a verdade 
se enrede na loucura
própria de quem se julga vivo
sabes que não minto

apenas dedilho  as poucas palavras 
que fogem pela fresta dos olhos
encaminhando-as para o poço da morte,
onde motards tatuados nas costas
 desafiam os limites  de uma coisa sem nome


e quando as coisas se tornam inomináveis
 começa um poema

05/09/2015

El-Jadida #1

Aqui início um conjunto de poemas escritos, no mês de Julho,  em El-Jadida (antiga Mazagão) no reino de Marrocos.

#1

Porta a porta
sente-se o destino,
(o makbut como aprendi depois )

Por entre o ar fétido das ruas,
há um exército de vontades
tão diferentes das nossas

Os burros e as vacas comem lixo
e um  rocinante procura esquelético
o seu Quixote numa rua de papel

Os barcos vão e vêm

Há peixe ftito
a vender pelas ruas
como um trigo que nasceu no mar

As suas escamas e guelras
esventram a maresia
com odores de morte
e especiarias

O divino é geométrico
para que deus se torne tão lógico
como um bule de  chá de hortelã e menta

Alá é afinal um teorema
que prova que os dias sem chuva
são a tensão vibratória dos músculos
de um garanhão árabe

O ator que não sabia fingir

Lembras-te da aflição do ator que não queria fingir ?
Se até o gafanhoto finge a sua estupefacção,
o que será do ator sem o  sortilégio da representação ?
Será apenas um provocador que
- retirando máscara a máscara
até ao limite de ser um cais de pedra -
aprendeu apenas a atracar navios
e a fazer partir uma  aragem de vontade.

03/09/2015

Aprender a passar


Olho o céu e vejo as nuvens  passar. Também nós passamos como elas e sem deixar grande rasto. Antes delas passaram muitas outras e depois delas muitas outras passarão também. Quem se importa com elas ou quem no futuro se importará connosco ?
 
 
Porque damos então tanta importância ao nosso futuro, se ele não tem importância nenhuma, assim como as nossas insignificantes vidas ? Preocupemo-nos também, em cada ato ou palavra, aligeirar o caminho dos outros, porque ele é tão duro e  agreste como o nosso.

 

02/09/2015

Uma simples preposição

"Cansado dos outros" ou "Cansado com os outros"  é a prova da riqueza das palavras,  onde a mudança da preposição "de" para "com" faz  toda a diferença. Entre estas duas frases encontra-se o estado de espírito do mundo ocidental.

01/09/2015

Alerta

E se os outros te pedirem para te tornares uma má pessoa  ? E se te coagirem ? Os soldados devem sentir a mesma angústia quando lhes pedem para matar outros soldados.

A alguma experiência que tenho, diz-me que não devemos ceder um milímetro ao mal e nem sequer podemos mais tarde evitar o seu retorno.