30/12/2013

Há árvores...


                  Há árvores que dão frutos, 
                  outras que dão pássaros 
                  e outras, serenidade quanto baste.

Inside Llewyn Davis ou "O direito à ilusão"



Inside Llewyn Davis (A propósito de Llewyn Davis) é um manifesto do direito à ilusão. Numa história circular, onde a metáfora de Ulisses regressado a Ítaca transporta-se para o homónimo gato e para o próprio Llewyn, demonstra que o talento (Inside) e a personalidade de um homem determina o seu destino independentemente do seu sucesso. Llewyn acaba por aceitar o seu fado, a sua cidade (Nova Iorque) e a relação áspera com aqueles que o rodeiam e que o acham, cada um há sua maneira, um falhado especial. O gato que acompanha a história é um alter ego do músico, conotando a personagem com a eterna mística dos gatos: Orgulhosos, independentes, mas demasiados frágeis para se imporem. Digamos que à semelhança dos domésticos felinos, Llewyn também é apenas tolerado, como um animal de estimação,  por todos aqueles que lhe querem algum bem.Deixam-no inclusivamente dormir no sofá, como aliás também se faz  aos gatos caseiros.


 A música Folk é o pano de fundo. A seleção da banda sonora e a forma natural como as musicas vão acontecendo, ora como um canto órfico de Llewlyn, ora apresentadas com o travo de humor amargo e vulgar, é simplesmente genial. Só por ela, vale a pena assistir a esta fita.

Inside Llewyn Davis é um filme (levemenete) hollywoodiano dentro do espetro independente dos Cohen, como narrativa que nos deixa a sonhar e com vontade de aprender a tocar violão para pedir esmola na estação do Marquês. Tudo o que este filme apresenta é irrepreensível: Atores, banda sonora, argumento, fotografia, realização.


Só posso dizer outra vez: Obrigado, irmãos Cohen.


29/12/2013

Aquilino, uma literatura bem temperada

Portão e Capela do Amparo da Casa Grande de Romarigães - Freguesia de Romarigães, concelho de Paredes de Coura


Já chega de comida sem sal e as palavras alinhadas tão comummente. Ler Aquilino Ribeiro é como saborear uma iguaria bem condimentada e única. Os seus temas coincidem com  um Portugal rural, interior e iniciático. Transportam-nos às raízes da cultura lusitana como os coentros ao sabor típico de alguns pratinhos da nossa cozinha. As suas personagens assumem de peito-feito as suas incoerências e são vertiginosamente sádias. Cada parágrafo de "A Casa Grande de Romarigães" é uma pincelada deliciosa de um grande fresco. Tanto assim é, que apetece copiá-lo como fazíamos na escola primária ou mesmo como faz um pintor-aprendiz diante de um fresco de Giotto ou de uma natural pintura renascentista. Leiam com atenção os primeiros parágrafos do romance:




"O  vento, que é um Pincha-no-Crivo devasso e curioso,  penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista !



Precipitado tão de alto do pinheiro solitário, balouçou-se um instante e ensaiou um voo oblíquo. A meio caminho volteou, rodopiou, viu as nuvens ao largo, a terra em baixo e, saracoteando a fralda, desceu em espiral. Poisou em cima duma fraga, ligeiro como um tira-olhos. Mas novo pé-de-vento atirou com ele para a banda, quase de escantilhão, e a aleta, tomando-se de imprevisto fôlego, arrebatou-o para mais longe. Foi cair numa mancheia de terra, removida de fresco pelos roçadores do mato, e ali permaneceu à espera que pancada de água ou calcanhar de homem o mergulhasse no solo, dado que um pombo bravo o não avistasse e engolisse. (...) 



Do pinhão, que um pé-de-vento arrancou ao dormitório da pinha-mãe, e da bolota, que a ave deixou cair no solo, repetido o acto mil vezes, gerou-se a floresta. Acudiram os pássaros, os insectos, os roedores de toda a ordem a povoá-la. No seu solo abrigado e gordo nasceram as ervas, cuja semente bóia nos céus ou espera à tez dos pousios a vez de germinar. De permeio desabrocharam cardos, que são a flor da amargura, e a abrótea, a diabelha, o esfondílio, flores humildes, por isso mesmo troféus de vitória. Vieram os lobos, os javalis, os zagais com os gados, a infinita criação rusticana. Faltava o senhor, meio fidalgo, meio patriarca, à moda do tempo. Ora, certa manhã de Outono...»



Aquilino Ribeiro, A casa grande de Romarigães: crónica romanceada (1957). Lisboa : Bertrand, cop. 1985



Então, que dizem ? Genial, não é? Parece a "Génesis" bíblica à escala da paisagem minhota.

22/12/2013

O presépio de Greccio

   Na véspera de natal de 1223, estavam proibidos os dramas litúrgicos por todas as igrejas por ordem do Papa Inocente III.
Francisco de Assis partiu, com o seu inseparável companheiro, frade Leão, para Greccio - Italia. Francisco, com dispensa do santo padre, recolheu apoios de alguns homens relevantes na região, e, numa gruta abandonada, encenou um presépio. Convocou depois, ao som de campainhas, todos os habitantes de Greccio a se deslocarem à gruta. Nesse local, a missa ficou sob a responsabilidade do Cardeal. Francisco já doente - viria a falecer dois anos depois - falou aos presentes. Durante as suas palavras, ele e muitos outros dos presentes viram o Menino Jesus a tomar forma sobre os seus braços.

Bibliografia "O Presépio" de Pietro Gargano




"S.Francisco celebra festa do presépio" - Fresco de Giotto na Basílica Superior de S.Francisco em Assis (Italia)

15/12/2013

Desertos


Praia da Fonte da Telha - Inverno 

























Aos nossos pés, às nossas mãos, aos nossos olhos ou apenas avançando sobre o pensamento, os desertos abrem-nos as portas do silêncio. Entregues somente a nós próprios, tornamos-nos a única  fonte da vida,  onde Deus nos alcançará sem dificuldade. Ali, onde  quase nada vive, podemos descansar sem ruído, sem dor. Apenas com o destino insólito do sol rasante sobre a cabeça.


13/12/2013

Salmo a uma rocha atlântica

Lembras-me um pináculo do mundo antigo,
defronte do qual um novo druida reza.
E quanta inquietação encerras em teu hirto saber ?
E quanta dignidade e solidão em ti perscruto,
ó filha bastarda de um continente dissoluto ?
Procuro-te desde sempre
- ainda que apenas o entenda agora -
e só encontro mais perguntas, diante do teu ignoto vulto.

Há em ti algo que começa e algo que acaba.

Há um moribundo que, por fim, estremece
e um nado novo que, em segredo, berra.
Será aqui que começa ou termina a Terra ?

Olhando o céu, interrogo-o mais:

A quem realmente pertence este altar
onde o mar desposa a serra ?
Será paraíso ou inferno
ou apenas punhado de pó esquecido
na hora sempre repetida da incrível Criação ?

Quem mo dirá ?

Quem sabe não responde.
Apenas um silêncio se traduz
no marulhar surdo das ondas.

Sobre a pedra,

o corvo marinho ensaia um voo
como quem tenta, inábil,
abraçar o horizonte entre as  suas asas.
Parece que leva, quieto e alçado,
sob as  patas
um continente cansado
ao encontro de um mundo novo.


Praia da Ursa - Azóia - Sintra



Praia da Ursa - Azóia - Sintra


02/12/2013

Um barco no deserto

"Porque construiu,  Noé,  um enorme barco no deserto ?" - perguntaram todos. Os homens riram. A mulher resmungou ao deitar-se e os filhos pensaram "Coitado do pai. Está perto, a sua hora.".

Parecia insanidade, um ato sem nexo, uma criação bizarra. Parecia muita coisa, mas era apenas fé.

 "Entrada dos animais na arca de Noé" - Grechetto

28/11/2013

Andar por aí...

E o tempo ? Não sei. Sinto apenas que alguém o escondeu. Acho que foi deus que piscou os olhos e nesse instante  parte da minha vida, tão longa e tão curta, passou. Foi bom. Muito bom, ter andado por aí.

Festa da Páscoa em Salvaterra do Extremo / Idanha-a-Nova

13/11/2013

O grifo redentor


Subiu ao último andar do prédio, onde todos iam fumar. Veio um grifo, uma espécie de abutre,  agarrou-o pelos colarinhos e, dando primeiro três voltas pela cidade, voou com ele entre as garras até  uma escarpa, na Beira Interior, mesmo interior, chamada “Salto da cabra”.

Depois desceu as escadas do edifício e devolveu a fatura a um dos fornecedores habituais.


09/11/2013

07/11/2013

O silêncio de Deus

São recorrentes as abordagens ao misterioso silêncio de Deus ? Lembrei-me hoje:  Será que o silêncio de Deus é apenas uma forma de Ele nos escutar melhor ?


06/11/2013

Sou logo sou

Narciso (1594-1596), por Caravaggio.





















Corro, corro como um viciado em mim,
como se eu não pudesse existir sem mim,
como se o universo fosse tão-só um átomo
de um órgão remoto do meu corpo.


Corro, corro de mim para mim.
Abraço-me, beijo-me, afago-me,
brindo-me e choro-me na desgraça.
Encho a casa, esvaziando-a da tua gente.
Tolero-te somente porque me serves,
tão-só porque me aqueces.


Perdoou-te para que haja alguém que me possa perdoar.
Acaricio-te apenas à espera do teu corpo, do meu filho
que te deixarei cuidar nas noites frias
em que vadio  longe do lar.


Os anjos e os anos passam transparentes.
Os filhos crescem com um ruído estranho.
São gaivotas gigantes
que se aquietam nas margens,
voando para me imitar e pousando em ti,
no teu ramo, ombro magoado.


Sou a árvore e cresces em mim
como um galho.
Na minha doença
serás o interino  tronco onde me encosto.
Tronco onde guardo minha seiva,
tua  por instantes.
Acreditarei que és um lar,  alpendre solidário.
Já não suporto o sol
nem esta chuva miudinha que me afaga e afoga
Sei que morrendo o mundo morre.
Apercebo-me finalmente do teu sorriso
mas espero que o brilho  do meu
domine de novo o espelho.


Sinto-me e pressagio  as úlimas dores
Espero paciente a partida
e organizo o memorial possível
refletido no lago,
qual antigo narciso que já não brilha
porque não reconhece mais as novas cores do sol.


A praia perde a suavidade do fim do dia
e ao longe parece-me apenas uma fenda nórdica.
As memórias percorrem-me
como a erva que cobre a pedra,
que arrefece com a invernia,
que esquece na medida em que a esquecem
e mais se esfria sem surpresa
quando todos os outros aquecem.


Naquela que será, que já é,
a minha imensa morte,
sou um estro carbónico que se consome
como uma limonada, no pico do verão,
correndo pela garganta escura de uma virgem loura,
cinzas que pouco resistem
ao sopro da tua boca minha.

26/10/2013

O Malhadinhas



Acordar antes da hora e ler o Aquilino é perpetuar o sonho que trazemos da cama. Na história, o Malhadinhas atravessa um nevão e a Serra do Barroso com o Frei João das Sete Dores. Depara-se depois com um lobo que uivando chama a matilha. Felizmente o frade tem um turibulo na albarda do burrico. O Malhadinhas, vivaço, agitando o instrumento religioso que serve para espalhar incenso nas igrejas, assusta os lobos com aquele barulho metálico. Acaba tudo no mosteiro, com o Malhadinhas aboletado pelos irmãos. 

Voltei para cama. Terei sonhado o sonho do Aquilino ?

21/10/2013

Um quadro suburbano

Ontem quando cheguei a casa à noite, um grupo de rapazes negros falavam alto,  trajando as suas roupas "afro-urbanas",  junto ao meu prédio. Mais ao lado, sentada num degrau de acesso ao pátio, a mãe deles  lia histórias a outra filha. Tive em poucos minutos sentimentos contraditórios. É humano. Eram os meus vizinhos do 1º andar. Tinham ficado sem chaves e esperavam provavelmente que alguém as trouxesse. Acontece-me muito esquecer-me das chaves também.


14/10/2013

O abraço

Naquele dia singelo,
Ela abraçou a árvore
Como se da noite viesse
E regressasse, fértil, à vida.

10/10/2013

A moura - a leitura














Ontem surgiram tantos atores e curiosos para  a leitura de "A moura" que alguém disse que parecia a reunião geral de uma novela. Foi apenas uma primeira abordagem efetuada com as características das primeiras vezes. Julgo  também que para a maioria  dos presentes - e apesar do avançar da hora - foi também amor à primeira vista. Conclusão: A moura funciona. Precisa de eventuais ajustes para ganhar algumas dinâmicas e  ritmos. Mas tem um motor de vinte e tal  atores, tracção aos quatro atos e um bom final - diria bonito e poético. Obrigado a todos os que saíram de casa para ficarem mais mouros.

Próxima sessão de trabalho: 16 de outubro de 2013 - Local: TPN

28/09/2013

A moura


Cresceu nove meses na barriga do computador. Faltam duas semanas para ver a luz do dia e ser lida pelos atores, pela primeira vez, como quem visita um recém-nascido no quarto da maternidade. Falo-vos da peça de teatro "A moura" - drama medieval para vinte e tal atores. A encenação será de Porfirio Lopes e a produção, do Teatro Passagem de Nível. 
Em redor da clássica história da moura encantada, o texto fala de amor e fé. Passa-se em 1362, em Ourém, no reinado de D. Pedro l.

25/09/2013

Via Láctea

Anteontem, pela primeira vez, alguém disse um poema meu em público. As pessoas gostaram e até houve quem, imaginem, o procurasse na internet. Por essas e por outras, aqui o deixo em baixo, à espera das garras dos "motores de pesquisa":

Via Láctea

Um cão azul chamado semiótica
A inquilina da leitaria antropológica
A fila de automóveis do medo
As gravatas do sucesso poluente
O amante do amor da vizinha
O cheiro da mercearia anónima
Os edifícios vestidos de tempo
Um arbusto com perfil sexual
O O’Neill a sorrir de desgosto
O lixo do androide bancário

A rua … O povo … Portugal 



20/09/2013

Experiência da profundidade

Um desenhador, Filipe Almeida, experimentou  neste esboço (Sketch), uma nova técnica para ele. Cito o desenhador: "1º plano com um traço simples com a paralel pen e deixar o plano de fundo apenas para a mancha com aguarela, para criar uma noção de profundidade."

Talvez a sua intenção tenha sido apenas visual, mas a profundidade  por ele criada extravasou esse domínio. A simbólica oliveira e os verdes prados fizeram-me experimentar uma verdadeira profundidade espiritual. Obrigado, Filipe, pelo teu olhar, traço e pincelada.




Para verem mais trabalhos do autor, dirijam-se ao Urban Sketchers - Portugal. cliquem no link abaixo:
http://urbansketchers-portugal.blogspot.pt/search/label/Filipe%20Almeida

17/09/2013

Moderado, uma posição relativa

Dizem que são os moderados que mudam o mundo. Como a posição de moderado é uma posição relativa, pergunto: Se não é necessário voltar a marcar a posição dos extremos, para legitimar, de novo, o estatuto dos moderados?

16/09/2013

Horizonte Portugal - Jornadas Europeias do Património 2013

O Horizonte Portugal com a colaboração da Biblioteca Nacional, e integrado na Jornadas Europeias do Património, vem convidá-lo a comparecer na apresentação deste projecto no dia 21 de Setembro de 2013, na Biblioteca Nacional.

O Horizonte Portugal é um projecto em desenvolvimento para a elaboração de um sítio na Internet sobre a imagem do território português, através da colocação on-line de uma selecção de fotografias de um arquivo recente, constituído por mais de 1.000.000 fotografias, com a cobertura da totalidade do espaço português, com incidência nos temas da paisagem natural, rural e urbana, bem como da arquitectura e engenharia.

Para além do sítio na Internet,  irá ser apresentado  um projecto museológico do Horizonte Portugal que será fundamentalmente  um espaço em permanente desenvolvimento com vista ao aprofundamento cada vez mais eficiente da divulgação da imagem de Portugal, do seu território, das suas paisagens e das suas arquitecturas

Local : Lisboa , Campo Grande , 83 ( Biblioteca Nacional)
Hora : 14:30 - 17:30 Horas
Organização : Duarte Belo e Biblioteca Nacional




15/09/2013

Redescobrir Aquilino



A primeira vez que o li achei o seu vocabulário, gíria e regionalismos demasiados densos. Arrumei-o na prateleira. Agora por referência de um amigo, regressei aos seus livros: "Casa Grande de Romarigães" e "O Malhadinhas". E percebi a sua enorme dimensão, originalidade e qualidade. Enfim, não devem faltar argumentos nem livros para ler Aquilino Ribeiro. A graça e a vivacidade da sua prosa é única e faz-nos sentir intensamente portugueses. O contexto do seu génio pertencem a  uma determinada cultura - mais interior e afastada dos grandes centros do litoral. Numa altura, em que se fala em regressar às origens, devido à crise, ler as obras de   Aquilino Ribeiro é já um regresso às origens, ao mundo ancestral de um portugal remoto, mas mais genuíno que qualquer outro.




11/09/2013

"A Luz da Terra Antiga", Luís Oliveira Santos

A Academia Portuguesa de Cinema anunciou a sua  lista de nomeados aos Prémios Sophia 2013. Na categoria de "Melhor curta metragem documental" foi nomeado o documentário "A Luz da Terra Antiga", Luís Oliveira Santos. Este trabalho aborda o trabalho de campo efetuado pelo fotografo Duarte Belo na produção do seu livro "Portugal - Luz e Sombra, O País depois de Orlando Ribeiro" Ed. Temas e Debates, 2012.

Para quem como eu já viu este documentário, entende que esta nomeação foca-se no excelente trabalho de Luís Oliveira Santos e no tema aliciante do trabalho de campo do fotografo Duarte Belo. Para além, de uma excelente seleção musical.




A Luz Da Terra Antiga - Movie Trailer from Luís Oliveira Santos on Vimeo.



29/08/2013

Caminhada

Brilha no buraco onde se fixa a sombra.
Corre pela brisa que não corre na fotografia.
A luz cegou-te, ainda assim continua.
Hás-de encontrá-la, juro-te.
Não sabes bem o quê,
mas hás-de encontrá-la um dia.

Vale do rio Erges, próximo de Salvaterra do Extremo. 2005 - Foto de Duarte Belo



26/08/2013

Alcácer do Sal - O sabor da história

Alcácer do Sal é uma das cidades mais antigas da europa. Usado como porto pelos Fenícios para o comércio de estanho com a Cornualha,  constituiu um ponto de referência pelos  povos que marcaram Portugal culturalmente (Romanos, Visigodos e Árabes). A cidade  apresentava todas as condições para ser considerada um ponto estratégico do ponto vista militar e económico durante a reconquista cristã no séc.XII. A sua conquista definitiva efetua-se apenas no reinado de D.Afonso II.

Hoje a cidade tem pouco mais de 6.000 habitantes e o concelho, 13.000 – o que me parece muito pouco. Alcácer - relativamente próxima de Lisboa, Setubal e Sines - merece uma visita. Pelas suas gentes (A Pensão “A cegonha” é muito acolhedora), gastronomia ( Provem a pinhoada), beleza (Tomem uma refeição à beira do Sado) e pela sua oferta turística (De Tróia a Sines, passando pelo inolvidável porto de palafita da Carrasqueira).


Alcácer tem tudo, só faltam habitantes e a sua visita.

PS. A Praça de Touros João Branco Núncio é de uma beleza e casticidade invulgar. O matemático Pedro Nunes nasceu ali.Duas curiosidades com bastante significado histórico e cultural.

16/08/2013

A Génesis segundo Sebastião Salgado


António Nobre



Fazia hoje anos o poeta António Nobre. Reuniu todos os seus poemas num só livro, a que chamou obviamente "Só". A sua vida é trágica e curta. Deixou-nos belos poemas, diria únicos. Aqui fica um poema seu  sobre outra gesta de valentes portugueses, os poveiros.


Poveiro

Poveirinhos! meus velhos pescadores! 
Na Agoa quizera com vocês morar: 
Trazer o lindo gorro de trez cores, 
Mestre da lancha Deixem-nos passar! 

Far-me-ia outro, que os vossos interiores 
De ha tantos tempos, devem já estar 
Calafetados pelo breu das dores, 
Como esses pongos em que andaes no mar! 

Ó meu Pae, não ser eu dos poveirinhos! 
Não seres tu, para eu o ser, poveiro, 
Mail-Irmão do «Senhor de Mattozinhos»! 

No alto mar, ás trovoadas, entre gritos, 
Promettermos, si o barco fôri intieiro, 
Nossa bela á Sinhora dos Afflictos! 

António Nobre em "Só"




07/08/2013

Iliopouli

Mesmo na cidade do sol
não há dias perfeitos.

Às vezes o vento
varre a luz presa nas árvores
e os gatos deixam temporariamente
de pousar para os poemas.


Nota: "Iliopouli" significa "Cidade do Sol" em grego - Helio (sol)+Pólis (Cidade). É ainda um subúrbio  de Atenas.




06/08/2013

Geia sas

Que a vontade nunca te falte,
Ó soldado da luz,
Sê  firme, forte e bem aventurado.

Estou certo que as montanhas  saudar-te-ão
E de outros portos afamados
Virão canções sobre a tua vontade indómita
Anónima.

Que a misericórdia dos deuses te seja concedida
E os peixes te devolvam
Toda a prata que suas escamas carregam.

Eu te saúdo
Vizinho da minha hesitação ,
Reflexo informe dos meus medos.

Eu te saúdo
E aguardo curioso
Pela tua saudação.


"Geia Sas" significa " Sê saudável e forte"  em grego e é utilizado para cumprimentar - o equivalente a "Olá".
Este poema é dedicado ao meu amigo Spirus Denaxas que me explicou de uma forma vibrante o significado desta palavra em grego. Nunca mais esquecerei aquela lição.



02/07/2013

O último voo

Aproveita o teu último voo,
criatura.

Mais tarde ou mais cedo,
o chão do paraíso fugir-te-á.

És mais breve do que pensas
e estás inquinada de desejo.


17/06/2013

A crise dos 40 - Parte II

Há alguns posts atrás, transcrevi neste blogue um extrato do genial poema de Fernando Pessoa, "Tabacaria", onde estabelecia um paralelo entre esse extrato e a famosa crise dos 40.

 Para ficar de consciência tranquila, não podia deixar de transcrever um segundo extrato de outro poema genial, o "Relatório e Contas" de Ruy Belo, extraído do seu livro "Boca Bilingue". Aqui, como na "Tabacaria", a abordagem do arrefecimento da vida humana é tratada, a meu entender, de forma sublime:

"Setembro na verdade é mês para voltar
Podes tentar ainda alguns expedientes respeitáveis
multiplicar diversas diligências nos ameaçados cumes dos outeiros
ser e não ser fugir do rótulo aceitar e esquivar o nome fixo
E no entanto é inevitável: a temperatura descerá mais dia menos dia
Calas-te então cumprido como um rosto e puxas toda a tarde
sobre esse corpo que se estende e jaz
Andaste de lugar para lugar e deste o dito por não dito
mas todos toda a vida teus credores saberão onde encontrar-te
pois passarás a estar nalguma parte
Tens domicílio ali que a terra sobe levemente
e toda a tua boca ambiciosa sabe e sente quanto barro encerra"


Ruy Belo

"Boca Bilingue"

16/06/2013

Coisas simples

Há coisas simples e agitadoras. Coisas que destroem para que seja possível reconstruir. Tal como a renovação celular, precisamos de destruir regularmente as camadas de verniz que colocamos na pele para que os poros respirem melhor. Precisamos da loucura para continuarmos lúcidos.



10/06/2013

"O que é a vida?", segundo Kierkegaard

Todos os dias somos confrontados com  citações de grandes pensadores. Estas grandes frases podem
ler-se nos jornais, nas redes sociais ou mesmo se fizermos uma consulta nos motores de pesquisa. 

Algumas delas, que nos parecem brilhantes à primeira leitura, depressa perdem  a genialidade  se as analisarmos com um olhar mais crítico. As piores de todas parecem  slogans publicitários tal a sua falta de sustentabilidade e sensatez.

Esta semana, porém, li uma citação que me fascinou. E quanto mais penso nela, mais me  parece fantástica e reveladora. Escreveu-a Soren  Kierkegaard. 









03/06/2013

Wagner em versão " Pop Art "

O meu amigo Ricardo Simões tem duas costelas, uma wagneriana e outra de artista plástico. Resolveu juntar as duas e eis um "Wagner Pop Art Version".

Se ainda houvesse espaço social  para escândalos, depois da invenção dos jornais tablóides, este seria um estrondo. Infelizmente, esta imagem, nos dias de hoje, é apenas um barulhinho. Mas que gostei , gostei.



31/05/2013

32ª aniversário do Teatro Passagem de Nível - Amadora

O Teatro Passagem de Nível fez 32 anos. O meu amigo e colega da mesa da Assembleia Geral do TPN, Domingos Galamba,  pediu-me para fazer um dos discursos. Nunca tinha escrito nenhum. Aqui fica para memória futura:

Exmos. Senhores (...)

Assim como o teatro se representa tradicionalmente por duas caras, uma triste, a do drama, e a outra alegre, a da comédia, também o Passagem de Nível, ao longo destes 32 anos, tem os seus sentimentos conflituantes.
Tem a saudade bonita de ter trazido a colaborar nos seus projetos um conjunto de personalidades que bastante nos honram, e passo a citar alguns deles, uns felizmente vivos e outros que fisicamente já não estão entre nós. Chamam-se ou chamaram-se Joaquim Benite (Encenador), Mário Viegas(Ator), Jaime Salazar Sampaio(Dramaturgo), Jorge Colombo (Cenógrafo), Fernando  Filipe (Cenógrafo), Carlos Correia (escritor) - só para referir ou lembrar algumas figuras que connosco trabalharam ou colaboraram, porque existem existem muitos mais que mereciam a honra de uma referência.

 Mas temos também a outra máscara, a da alegria, a alegria de termos  ajudado a subir ao palco muitas gerações de jovens como os casos mais relevantes de Mafalda Vilhena e Dinarte Branco   e outros menos jovens que entre as nossas paredes de ilusão puderam também sonhar, revelar-se e ao contrário do que se pensa, ter o privilégio de retirar as máscaras para subir ao palco ou ajudar os outros a subirem-no. Porque o teatro amador, não são só autores, atores e encenadores, mas um conjunto de pessoas que voluntariamente dão o seu tempo livre para esta causa nobre e que eu aproveito para saudar.

Ao longo destes anos, formou-se uma corrente entre gerações, sensibilidades e caminhos que se cruzam no palco, nos ensaios, no foyer, nas bilheteiras, nos espetáculos itinerantes. Tem sido esta, como sugere o nome do grupo, a nossa missão: estabelecer passagens entre duas margens, entre dois níveis de cidadania e humanismo, entre aquilo que cada um é e aquilo que porventura será no futuro. Não acredito que alguém tenha participado na nossa vida associativa através dos espetáculos, dos cursos de teatro, dos prémios literários ou dos festivais de teatro e não tenha saído mais humanamente mais rico do que entrou. Esse é o nosso orgulho. Esta será sempre a nossa  esperança. 

Quanto ao futuro ? Não tenhamos medo dele. O teatro coabitou com muitas crises históricas, guerras e mil e uma revoluções tecnológicas e políticas. Contudo o teatro esteve, está e estará sempre por todo o lado. Da China ao Canadá, do teatro nacional à mais humilde sala do mais recôndito lugar da terra. Nesse futuro, o Passagem de Nível será um espaço para a refletir a história, para os autores de língua portuguesa e para a cidade da Amadora.
Mas também um espaço de procura, de inquietação e provocação aos mitos do senso comum, às verdades servidas já cozinhadas pelos media.


Assim permita a nossa humilde arte e esta força suave de quem acaba de fazer  32 anos.

20/05/2013

A "Tabacaria" e crise dos 40


Sortudos aqueles que chegam à meia idade e não subscrevem estes versos do Pessoa. Eu, à exceção do último verso, subscrevo-os. Que génio!



Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Álvaro de Campos em “Tabacaria

08/05/2013

Rosebud


Rosebud é o nome do trenó que significa a infância perdida no filme  'Citizen Kane' de Orson Wells.  Rosebud é o trauma que faz correr Kane.  Gosto de pensar que são os desequilíbrios que produzem o movimento humano,  a história e os momentos capitais das nossas vidas. Quando tento compreender alguém ou alguma atitude, penso amiúde : "Qual é o teu Rosebud, rapaz?".

João Ricardo Pedro (Prémio Leya 2011) é amadorense


"João Ricardo Pedro nasceu em 1973, na Reboleira, Amadora. Curioso acerca da força de Lorentz, licenciou-se em Engenharia Eletrotécnica pelo Instituto Superior Técnico. Durante mais de uma década, trabalhou em telecomunicações sem, no entanto, alguma vez ter aplicado as admiráveis equações de Maxwell. Na primavera de 2009, em consequência do carácter caprichoso dos mercados, achou-se com mais tempo do que aquele de que necessitava para cumprir as obrigações do quotidiano. Num acesso de pragmatismo, começou a escrever. O Teu Rosto Será o Último é o seu romance de estreia."


01/05/2013

Como são simples as portas do céu



Subimos e descemos a íngreme encosta dos "Penedos Juntos" de Monsanto (Beira Baixa). Estancámos os nossos passos defronte da Capela de São Miguel (Séc.XII).  Tínhamos-nos deslocado no tempo e no espaço. Não havia dúvida. Naquela altitude e diante daquele remoto lugar de culto, estávamos de certo às portas do céu. Portas simples é certo, mas não menos celestiais.

"Então é isto..." - Pensámos desconfiados e deslumbrados, como se ambos os sentimentos fossem compatíveis. 
"Vamos entrar?" - Perguntei-lhe eu, afoito.
 " Não." - Respondeu ele com aquele jeito cordial tão próprio - "Vamos descer mais um pouco até ao vale. Ainda é cedo para entrarmos."
"Tens razão. Temos muito ainda para ver lá em baixo." - Rematei.

Fomos ter com as mulheres e lá nos pusemos ao caminho. Se bem me lembro, ainda encontramos o primo Viriato, na taberna dos Lusitanos. Havia javali e cidra fresca. Fizemos bem em regressar por agora.  





29/04/2013

A mulher e a terra


“Terra/ para os pés, firmeza/ para as mãos, carícia” – em “Terra” de Caetano Veloso


Gostar de um lugar é como gostar de uma mulher. Temos de aprender a suportar-lhe os maus humores, as trovadas, o calor intenso da fricção entre a vida e ventos frios de espanha. É preciso percorrê-la, por cada curva, cada ravina, aprendendo a escalar o seu sinuoso corpo até à boca ou à torre sineira.

Por último, morrer por ela, se o inimigo ousar ameaçá-la com terror
                                                 [ou tão-só com a paciência mórbida dos cercos.]