23/10/2021

Tempus fugit

 Uma das formas de lidar com a passagem do tempo é emular outra vez a simplicidade da infância.

Afinal tudo é simples para uma criança: a sua consciência cinge-se ao imediato.

Tenho notado que envelhecer é um regresso gradual, mas inevitável,  a esse estado pueril de existência — sem amanhã, nem ontem.

Os mais jovens também não atribuem demasiado valor ao passado, nem ao futuro, optando na maioria por viver o imediato.

Compreendo a sua escolha: a perceção exclusiva do imediato  é o maior dos festins, ainda que a ressaca se torne indigesta, ainda que o passado enquanto repositório de saber pudesse prevenir, prever e explicar muita coisa.

Anfíbio

Nem mar, nem terra
e apesar disso
ambos
frio e quente
como uma praia 
 onde o sangue
leva o sal ao mel

22/10/2021

Sons matinais

Acordas.
Ainda está escuro.

Apenas os sons
te trazem o essencial:
a caricia da água 
caindo na mesma água;
as três primeiras notas
que tocas, em pijama, no piano.

E uma memória retorna
sonora do futuro,
como um epitáfio soletrado
até ao nascer do dia.

16/10/2021

Poemas cinzentos para colorir


Verde e cinzento

Não entendo

como se entendem as cores.

Um coisa é certa:

o outono sabe.



O chapim anuncia

a chuva.

Silêncio.

Quem canta agora:

o céu ou a terra?



Porque ladram os cães

dia e noite?

Temo que sejam poetas

cantando em vão.



Paz outonal:

pedra que ainda pisa

os dissabores da invernia.



O mar

une-se ao cinzento do céu.

As gaivotas sublinham

essas núpcias,

enquanto as ondas terminam

de encontro aos meus pés

submersos

    translúcidos

        temporais



Agora sim: é outono!

Surgem-me os primeiros versos molhados

pelas gotas que caem ao florir.


15/10/2021

Canção para embalar a morte

Castelo de areia
levado pelas ondas
que o mar cuspiu:
muralhas, primeiro 
torre e ameias,
tudo ruiu.

Castelo de areia 
vaga lembrança 
que alguém construiu,
quando era criança 
e não sabia ainda
que o tempo era um rio.

13/10/2021

Águas de outubro

 Qualquer coisa de ouro velho e abstrato invade o ar através do lento vapor desta manhã de outubro. As gotas da chuva miudinha desfazem-se nas folhas dos arbustos mais rasteiros, tornando-as tristes e vivas como seres pensantes, quando se detêm diante de um tom magoado de luz.  Os pássaros prometem-nos que não há pressa. Entre eles nunca houve verdadeiramente. A primavera está outra vez demasiado longe do horizonte e as sementes preparam as suas camas de orvalho nas veias do húmus sobrevivente da última estação quente. O poema — omnipresente, mas impotente — escreve-se no voo curto e débil  das primeiras folhas caídas. Em cima dos lábios, cantilenas sombrias entreabrem  frestas no peito do mais distraído pastor de máquinas.

05/10/2021

Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs

 Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs

são arpejos de chapins refletidos sobre os ribeiros,

camiões em trânsito trazendo e levando a claridade,

anseios ligeiros, quando os tempos são de invernia.


As manhãs conhecem-nos nus e esfomeados.

As manhãs são a esperança das noites,

ou a angústia de quem se percebe vivo outra vez.

Como louvam os pássaros as manhãs,

enquanto se agitam as estradas tão estranhas

ao mar raso e coloquial

que entra sem rumor pela praia de Algés adentro.


 Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs

têm o sabor amargo do café

 que sentimos nos cantos da boca,

quando a fala trôpega sacode o ar ainda frio

que se esgueira pela fresta da janela. 

São um prenúncio das histórias verdadeiramente inventadas.

São o fio da navalha, limite incerto entre a paz e o metro,

o calor e a chuva inesperada, o desejo de um bolo

que não se come há anos.

 Oh as manhãs, as manhãs, as manhãs.


04/10/2021

De onde vem a História?

 Li algures nas "Viagens da minha terra" de Almeida Garrett que se conhecêssemos as verdadeiras razões históricas todos nos riríamos dos historiadores. Depois desta afirmação, nada mais diz o autor, deixando à imaginação do leitor a verdadeira natureza da história. Por isso, podemos imaginar que a História surja de um problema individual, de um sentimento pessoal, um complexo ou uma situação mal resolvida que transvaza primeiro para uma família, depois para uma aldeia e por fim para um povo. Talvez essa pequena história se replique centenas, milhares de vezes, dando lugar a uma grande mudança civilizacional.

"O último castro antes de Roma"*  é um relato possível deste processo de mudança que vai desde a instabilidade de um individuo até ao mundo inteiro. Se angústia significa falta de esperança, acalentar que qualquer um pode fazer mudar o mundo é um sinal de confiança na humanidade.

*"O último castro antes de Roma" é a próxima produção do Teatro Passagem de Nível a estrear ainda em 2021.

 

 

A poeira

 A poeira dos mortos ergue-se aos céus,
parede traiçoeira turvando o futuro.

Grão a grão,

sobre as cabeças se condensa,

transubstanciando-se numa lama informe.


Depois caí aos pés dos que pela terra erram

num julgamento cíclico

e afinal redentor.