27/08/2021

Meu querido mês de agosto: o regresso

Encontramos a cidade ainda meio adormecida. Os estacionamentos parecem bocas desdentadas. Para reiniciar as máquinas, basta carregar no botão. As pessoas têm uma matriz natural: espreguiçam-se, lavam os olhos, bocejam e tomam depois o primeiro café devagar a olhar o infinito interior. A cidade também regressa assim, aos solavancos, como um corpo que deixou os seus órgãos a funcionar apenas para se manter viva enquanto dorme.

Passo em revista as tarefas, as rotinas e os compromissos profissionais. Sinto-me um toureiro que antes da corrida espreita um a um os touros que vai lidar, com um misto de temor e desejo.

A respiração acelera. Recordo ainda o silêncio e as águas de agosto; as caminhadas; os passeios; as praias e os museus; as pessoas que conheci e que não sei se voltarei a ver.

«Parar, começar, parar, começar”, lembra-me o som de uma máquina a vapor. Tem ritmo. Tem vida. Vamos a ela, companheiros.  

Fotografia de Frame Harirak em Unsplash 



26/08/2021

Meu querido mês de agosto: o silêncio

"Preciso deste silêncio", pensei. Porquê este e não outro?

Os silêncios deviam ser todos iguais, mas não são. 

Há o silêncio das trincheiras, precário, sujeito à vontade da artilharia, da nossa ou dos outros. Esse apenas dura o suficiente para recuperar da agitação  que o troar dos canhões far-nos-á de novo sentir; assemelha-se à golfada de ar que o mergulhador vem receber à  superfície antes de voltar a afundar-se nas águas  turvas.

O silêncio da serra é diferente: faz parte dela; é a ausência que torna o restante mais presente. 

Conhecem aquelas pessoas que através do olhar sabemos que falam verdade? Este silêncio é assim também; não sabe enganar; porque nos olha defronte nos olhos e isso basta para nos fazer acreditar nele.

25/08/2021

Sevilla, la venus del bronce

Os europeus sempre foram sensíveis à cultura da Andaluzia. No período romântico e naturalista (século XIX), os pintores registaram as suas  paisagens, os costumes e o folclore da região. Chamou-se a este movimento o Costumbrismo Espanhol. Depois de visitar o Museu de Belas-Artes de Sevilha, não pude deixar de registar no caderninho de bolso esta síntese de lugares-comuns:



Sevilla de los bandoleros, gitanos y brujos encantos. Sevilla caliente con guitarras heridas de lamentos y flamencos, pero también de los santos, curas y catedrales. Sevilla árabe mirando los toros en sus  caballos y burritos ajeados a Andalucía. Sevilla de las descubiertas, pero misteriosa como un patio donde apenas se vislumbra un rincón. Sevilla de lo gazpacho, salmorejo y tapas desde las 5 da tarde a las 11 de la noche. Sevilla de los mendigos, desvalidos y ladrones. Sevilla de la sangue caido en la arena, subiendo hasta la media Luna reflejada en Guadalquivir.

 

Sevilla, otra igual non había, por eso también non habrá otra.






23/08/2021

Meu querido mês de agosto: a água


Entre vales, fomos ao encontro da água que se ajuntava em açudes e pegos debaixo de frondosos carvalhos e amieiros. Descemos depois a serra, atravessámos a planície para nos banharmos no mar.

Em agosto, procuramos a água por instinto. Quando ela nos envolve sentimo-nos purificados, renovados. Talvez  o calor,  que nos estimula esta comunhão, seja apenas uma desculpa sensata para mergulhar. 

A biologia e o mito explicam que viemos da água e somos também água.  Ela representa o sagrado e o essencial para a vida. Os nossos poetas cantam-na: Pedro Homem de Mello escreveu  "Povo que lavas no rio" para Amália cantar depois; Ruy Belo definiu que "Portugal é o que o mar não quer", ou seja aquilo que o oceano nos deixa usar.

Agosto traz um mar que nos leva os escolhos e  lava as nódoas. E assim renascemos sem dar conta. 

Porque não  institucionalizamos o rito de mergulhar como os hindus realizam no Ganges?  Porque se o fizéssemos, assumiríamos uma paixão, uma sujeição. E nós acreditamos  cada vez mais na falácia que  controlamos quase tudo. Eu, por mim, não resisto à água fresca em agosto. 


Fotorafia de Jeremy Bishop em Unsplash

09/08/2021

"Her", um amor virtual

Será que a Inteligência Artificial conseguirá  desenvolver o parceiro/a ideal? 

E quais as suas caraterísticas: absolutamente adaptado ao utilizador ou complementar a este? Parece-me que o maior risco está naquele "absolutamente adaptado" ou que "se vai adaptando" recorrendo a algoritmos adaptativos ou de  aprendizagem. 

Se o "Outro" for feito à nossa medida, deixa de ser o "Outro" e passa a ser "nós próprios". Acaba-se com o "Inferno" de Sartre, segundo o qual "O inferno são os outros", substituindo-se assim o relacionamento interpessoal pelo intra pessoal, onde o nosso ego não terá contraponto.

O filme "Her"/"Ela" está na plataforma de ‘streaming’ "Netflix". Vejam-no se puderdes.