30/04/2021

Vem como és

Hoje a canção "Come as you are" dos Nirvana faz 30 anos. Passadas três décadas, parece-me algo anacrónico pensar que ainda é vital estimular a consciência da liberdade individual como forma de reforçar a coesão coletiva.   Apesar dos recursos que a Globalização me trouxe, parece-me também  ter-se tornado num mecanismo de uniformização cultural, deixando o individuo demasiado condicionado a uma consciência universal e superficial. No horizonte político, notam-se também algumas nuvens autocráticas e despóticas, perspetivadas agora como um remédio amargo, mas eficaz para as nossas dores. A liberdade tem um preço. Primeiro é preciso encontrá-la num amontoado de liberdades prêt-à-porter - o que não é fácil - e depois ter coragem para pagar o seu preço.

21/04/2021

Águas calmas

 As águas calmas da barragem fazem-nos cair num sono, numa miragem plácida, onde só o sossego parece prevalecer. Nas margens, o cheiro do poejo adoça-nos o palato através do seu odor. Alguns peixes assomam à superfície para caçarem os mosquitos que convivem em voos imprevistos e rasantes. O silêncio quebra-se de vez com o salto da carpa e o destino infeliz do insecto. São as águas calmas e opacas que nos tornam demasiado lentos e confiantes. Deixamos de fazer perguntas, porque ouvimos sempre as mesmas respostas. Não procuramos ver em profundidade. Queremos respostas rápidas, porque não podemos esperar. Preferimos não saber a verdade, ou seja, não nos apercebemos às vezes que a carpa se aproxima sorrateira para nos levar a luz e a liberdade.

Holiday

Íamos de férias para Sul. Estava sem emprego. Tinha-o perdido aos 50 anos, depois de 30 de carreira. Agora discutíamos com vigor e raiva sobre o melhor itinerário para chegar ao local do veraneio.  A discussão da rota era uma metáfora sobre as decisões da minha vida que me tinham levado a esta situação de precariedade. "Escolhes sempre estas estradas péssimas", acusou-me ela. 

Na rádio, como uma epifania, começou a tocar uma balada dos Scorpions, "Holiday": "Let me take you far away/ You'd like a holiday". Fiquei mais calmo. Ela também. Era como se Deus estivesse no banco de trás do carro a sintonizar o posto da rádio. Tudo havia de melhorar e melhorou de facto.



18/04/2021

À espera dos bárbaros

Enquanto os bárbaros não chegam, procuro o próximo brinquedo. Está demasiado calor para qualquer fantasia mais agitada do que o sono leve das manhãs de domingo. 

Aguardo o fuso horário do destino, com a mesma placidez de quem se senta à janela e espera a passagem de um cometa que se atrasou no caos sideral.

Olho a rua, as flores, os telhados defronte. Daquilo que partiu não consigo distinguir mais do que uma cadeia finita de longínquas imagens, recortes de uma revista velha que guardei na gaveta da cómoda por debaixo das meias.

No fundo da rua, pareceu-me ver  Jesus caminhando na minha direção. Seria uma alucinação? Que assim seja.

Enquanto os bárbaros não chegam, terei tempo para me barbear e procurar de novo os ninhos dos abelharucos. Quero entregar-me aos invasores com dignidade e com aquela esperança  instintiva que nos leva a fazer uma sopa apenas para a semana inteira.

15/04/2021

O Jantar da Raposa

 Uma aldeia é uma fábula de La Fontaine. A vida dos humanos e dos animais cruza-se com frequência.  Porque tudo ali é lento e previsível, vamos conhecendo os hábitos dos bichos — os seus trilhos, as suas manias. Depois das refeições guardávamos os restos de carne para entregar às raposas que rodeiam a aldeia. Durante uma semana, tentámos adivinhar os locais onde podíamos entregar-lhes o jantar. Nunca as vimos, porém. 

Mais tarde, um hortelão simpático informou-nos o lugar onde elas viviam. Lá fomos, nós com salsichas e entremeadas  matar a fome à família das raposinhas. Não encontrámos nenhuma. Deixámos lá o manjar e regressámos desiludidos. Já passava da meia da noite, quando decidimos lá voltar.  Qual não foi a nossa surpresa, quando, no improvisado comedor,  uma raposa abocanhava uma das salsichas. Valeu a persistência para vê-las e alimentá-las. Interpretei este sinal, como se o espírito da aldeia nos dissesse: "Nunca desistam de bem-querer.".



12/04/2021

Reflexão: as caminhadas na aldeia

Saímos cedo para a caminhada em redor da aldeia. E logo nos assaltam os aromas, os sabores, a rugosidade das pedras. Cheiramos a hortelã e o poejo, comemos figos e amoras, tateamos o musgo sobre as rochas. Quando o sinal de rede enfraquece,  os sentidos da proximidade ganham vitalidade: o olfato, o paladar e o tato.  Já não há momentos isolados, apenas um mergulho caminhado, um ato continuo, completo e autêntico. Sem intermediação, a natureza  torna-se imersiva e cheia daqueles detalhes que ganham um novo sentido quando se juntam. Por ali, não encontramos vestígios de inocência, mas apenas uma essência modesta, que apenas se revela até ao limite necessário para viver.



Foto de Fátima Rodrigues

09/04/2021

A morte do caixeiro viajante

Sempre que lá vou otimista

dizem-me que não chega ainda,

que a manhã já partiu

e a próxima só chega depois de mim.


"Foi por pouco", dizem-me,

"Tente de novo".


O sol já se abaixou demais.

Colhi e atei os raios que pude.

Guardei-os numa gaveta empenada de madeira.

Perguntei à minha mãe velhinha,

se  arrefeceriam eles?


Pelo olhar dela,

compreendi afinal para que serve a vida.

04/04/2021

Tempus fugit

 Idas as naturais sensações,

restavam-nos as palavras.

Apenas através delas acreditávamos,

mesmo sabendo-as impossíveis.


Para as pronunciar outra vez,

era preciso regressar

ao tempo que fugira

até um lugar irrepetível.


Nós não podíamos ir lá atrás.

Agora éramos dois grandes pinheiros

enraizados sobre a praia.



03/04/2021

A presença na ausência

 

Era Sexta-Feira Santa. Chegámos atrasados à missa. Devido aos constrangimentos da Covid-19, fomos desviados para o coro alto de onde tínhamos de assistir à missa. Subindo as escadas da igreja que davam acesso à varanda interior, fomos recebidos por um intransponível senhor de cabeça rapada. Tinha um metro e noventa e uma indumentária franciscana que deixava relevar um forte ascetismo e provavelmente uma ligação continuada aos mandamentos de humildade. Possuía uma cara séria e uma voz quase sussurrada que servia de contraponto com a sua massa muscular.  Segredava as ordens, devido ao espaço e ao início iminente da missa mais importante do ano litúrgico. Encaminhava as pessoas para os lugares previamente marcados com bolas brancas, fazendo gestos de polícia sinaleiro. Colocou-me na primeira fila. Ao sentar-me apercebi-me que não conseguia ver o altar, mas apenas Jesus na cruz que o sobrepunha. Tentei pedir ao arrumador para subir para uma fila mais alta. O pedido foi recusado com um “não” seco e um olhar desaprovador. “Não vejo nada daqui.”, justifiquei. “Não e não. Sente-se”, ordenou de novo. Sem argumentos, sentei-me. A minha mulher que ocupava um lugar numa fila mais alta, chamou-me para junto dela. Olhei de novo o arrumador e disse-lhe a ela que não podia. Ela insistiu. Eu resignado e frustrado virei-me para a frente firme, subjugado ao dever de cumprir as normas de segurança: tinha de aceitar a minha situação. Aceitar e compreender eram as únicas  atitudes capazes de lidar com a insatisfação. 

O padre e os acólitos entraram. A eucaristia ia começar. Levantei-me. Quando o padre Carlos começou a falar, conclui que devido a reverberação do som, não conseguia entender quase nada do que se dizia no altar e do coro. Apenas me chegavam algumas palavras e sons que pareciam por vezes desafinados. Um homem baixo que fora colocado ao meu lado, virou-se para mim e lamentou-se: “Não se consegue ver nada.”.  Na sua constatação, havia também um pedido de velado de insubordinação como se tivesse a aliciar-me para a formação de um movimento cívico que destituísse o arrumador ou outra ação semelhante capaz de nos fazer ver e ouvir a missa. Olhei para ele e encolhi os ombros. Tentei com o meu gesto, convencê-lo à resignação. As leituras, os cânticos, as liturgias seguiam sem freios e eu nada percebia e nada via, para além de algumas palavras soltas: “liberdade”, “Papa Francisco”, entre poucas outras. Aquele tempo privação, pôs-me a pensar em metáforas hipotéticas: o que significava a determinação do arrumador, a minha aceitação daquele lugar apesar das solicitações?  O que significaria  a incompreensão do que era dito ou feito lá em baixo no altar? Conclui que a aceitação é uma premissa religiosa; que por mais douto que me ache nas coisas de Deus, estou sempre muito aquém de um entendimento pleno dos mistérios e dos desígnios que atravessam os dois mil anos que me distanciam de Cristo e do momento da sua consagração. Mais uma vez estava a fazer a mesma pergunta que me seguia há semanas: o que podemos verdadeiramente conhecer? 

Fechei os olhos.  Estava agora a decifrar uma mensagem que seria impercetível se estivesse atento à mensagem de um emissor humano. As vozes continuavam incompreensíveis. O coro, os acordes do órgão pareciam agora bastante desarmónicos e desafinados. Aquela impressão e a altura em que me encontrava face ao lugar dos acontecimentos que decorriam lá em baixo fizeram-me colocar a possibilidade de também Deus não os entender. Mesmo que os entendesse vagamente, podia não se sensibilizar com as palavras cantadas à superfície da Terra. Assim, nem nós entenderíamos a palavra de Deus, nem  Ele a nós, levando-O a desprezar os nossos rogos, a não se emocionar com a tentativa daqueles que tentavam em vão evocar a beleza que Ele lhes inspirava. Na maior parte do tempo, não haveria ligação alguma entre os crentes e o criador: não entendíamos nós a sua palavra, ou aquela que a humanidade por via dos evangelistas, teólogos ou sacerdotes afirmava sê-la.

Fiquei a pensar que naquela missa, da qual nada  vi nem ouvi, a voz do Senhor revelou-me exatamente a importância  da sua ausência. O seu silêncio era a prova da sua existência. Porque em intensidade e momentos diferentes, todos temos saudades de Deus. E só temos saudades do que já tivemos.

Havia, contudo, uma esperança: no domingo de Páscoa, ele renasceria. E um cristão não pode perder a esperança.