24/01/2018

Hoje morreu-me um amigo

Surpreendido hoje pela morte de António Augusto Borges, fiquei mais pobre. Morreu-me um amigo, um amigo do teatro e da vida. Tenho a clara impressão que fiquei-lhe a dever qualquer coisa. Pelo menos, um abraço. Fizemos a "A Moura" juntos. Eu era o Conde e ele, o meu frade confessor.

A primeira frase durante o espetáculo que eu lhe dirigia era: "Ainda bem que vieste." E assim o continuei a cumprimentar cada vez que o via no foyer, nos ensaios, na rua, nos belos almoços que fizemos.

O espetáculo terminava com esta frase dita por ele: "Vou descansar. Foram dias de muito reboliço. Já começo a ficar velho, meu senhor. (Olhando primeiro céu devagar) Hoje está quarto crescente. Um bonito astro, por sinal. Faz lembrar a Oriana – a Moura. A princesa-santa. Boa noite, Conde. ". E fechavam-se as luzes.

Até sempre, frade. Provavelmente, num ou noutro momento de sensatez, humor ou boa disposição, vou lembrar-me de ti, António.


António Borges Lopes (frade) e eu (conde) em A Moura 2015/2016 



15/01/2018

no sentido irregular dos ponteiros do relógio

debaixo do sol
cumpre-se mais uma manhã

como pode ser tão regular o universo
e tão instável e indeterminada
esta balada que me desce
pelos braços e pernas até às extremidades,
este sentimento tantas vezes tresmalhado da esperança?

talvez sob o seu olhar altíssimo
também eu viva compassadamente
numa espiral perfeita e contínua
até ao momento em que face a face
Ele me receberá no lugar distante da nossa casa    amor




11/01/2018

Há um ar de neve

Há um ar de neve que me molha e seca
como se a liberdade fosse um pássaro negro
colado a um ramo tão altaneiro e destacado
que se podia dizer inquilino do céu

Deslumbrado, bate as asas, diante aquele horizonte
Bate as asas, o pássaro, bate as asas infinitamente
Mas das fixas patas que não descolam
vem-lhe à boca um sorriso tolo, disfarçado, intermitente
Ao longe, parece um louco
De perto, pareço eu

02/01/2018

Memória poética-matemática

O poema "Estudo de uma função inquieta variável" foi escrito por mim, em agosto de 1998, depois do estudo durante o verão  para a prova especifica de Matemática do 12º ano e foi publicado, nesse mesmo mês, num suplemento literário juvenil do CM, sob o pseudónimo de BB Lapper. Dedico-o agora à Beatriz Cazenave.


"Binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo"
Álvaro de Campos


Domínio

Infinito lar
quebrado aqui e além
pelo chão falso do acaso

Continuidade

De mãos dadas
a eterna falua* dos meninos
prossegue
num sigilo gráfico

Assimptota vertical

Nas mais altas torres do reino
vivem, para sempre noivas,
as primeiras princesas louras.


Assimptota Horizontal

Quem a traçou no firmamento?
A mão da terra que queria voar
ou a do céu que queria pousar ?


Monotonia

Também as linhas
crescem e decrescem
tão afeitas que estão à paixão dos homens

Concavidades

Absolutos,
os números sulcam os vales
ante o fogo cabisbaixo dos amantes


PS. Peço desculpa a todos aos que não puderam estudar uma função variável nas disciplinas de Matemática e que por essa razão tem mais dificuldade em entrever a poesia da Matemática.

* Falua - Barco de carga usado no rio Tejo, a palavra deriva do árabe Faluka que significa Barca.