29/12/2017

Que 2018 seja um tigre que espante

Quem tem medo do espanto ? Num mundo apressado, intenso de imagens e de sensações vagas, é preciso reaprendermos a espantar-nos.  Quando nos espantamos, a vida corajosa e vibrante regressa da infância aos nossos corações e sobressalta-nos de verdade.

 Foi esse impulso vital que encontrei neste postal da autoria da ilustradora Marina Palácio que complemento com um extrato de um poema do poeta místico inglês, William Blake, o qual não pude deixar de registar aqui.

Ilustração de Marina Palácio
"Tigre, tigre que flamejas
Nas florestas da noite.
Que mão que olho imortal
Se atreveu a plasmar tua terrível simetria?"


"Tiger, tiger, burning bright,
In the forest of the night,
What immortal hand or eye
Could frame thy fearful symmetry?"


Extrato do poema "Tigre" de William Blake

27/12/2017

A tela de Pénelope



Enquanto espera que Ulisses, seu esposo, regresse da guerra de Tróia, a bela Penélope vê-se assediada por inúmeros candidatos ao lugar deixado vago por ele. Penélope quer esperar por Ulisses, mas sabe que ao rejeitar os candidatos, ao lugar dele, sem um bom argumento, ganha inimigos e perderá a esperança que ela mesmo alimenta. Assim exposta ao risco de ser obrigada a casar de novo pelo seu pai, Ícaro,  Penélope começa a bordar  uma tela para o caixão de Laertes, o seu sogro  que entretanto morrera. De dia borda a tela e de noite desfaz o que bordou. Com o argumento de bordar um artefacto tão sagrado, não há candidatos que se atrevam a pedi-la em casamento. 

Engrandece-nos com a graça da humildade


21/12/2017

A história de um cão que dava um pequeno conto de Natal

Conheço um cão há muitos anos, desde cachorro. É uma daquelas raças apuradas para amarem os homens. Não ladram aos ladrões, não mordem e por mais maltratados que sejam perdoam sempre. Ontem reencontrei esse cão. Estava sozinho em casa. Os donos separam-se. Cada um seguiu o seu caminho, os filhos cresceram e o cão ficou sem dono de verdade. Os donos alimentam-no , dão-lhe cuidados de supermercado, como ossos de substâncias processadas para os dentes, passeiam-no todos os dias, mas  é como  vos dizia, aquele cão pertence a uma raça apurada para amar o Homem. Se ele fosse um lobo, não teria hoje aquele problema da solidão, porque para um lobo a solidão às vezes faz sentido. Agora, para ele, não. Ele sofre de uma imensa solidão, porque quer amar e como cão que é, não consegue criar simulacros de amor, não consegue amar em abstrato, fazer poemas ou simplesmente escrever cartas de amor. Amar para aquele cão, é brincar, correr, tocar e cheirar coisas novas e surpreendentes. O amor para ele é abocanhar-nos os braços,  levar chapadas e ralharetes,  correr para apanhar o pau que lhe atirámos, mas passa os dias sozinho, a querer amar e não tem a quem. Ontem, depois de um passeio que fizemos, ele - que sempre mostra  aquele ar jovial, alegre, quase desmiolado - confessou-me a sua profunda solidão. Depois de umas correrias, fugas, mijadelas e caganças, o sol pôs-se. E como dois amigos, no final de uma aventura alucinante, ele encostou o seu focinho nas minhas pernas. Tinha por momentos recordado, o que é para ele o amor, a vida verdadeira, o que ele gosta mesmo de fazer. Ficou nostálgico, melancólico. Disse-lhe, olhos nos olhos  - os dele estavam cerrados, como quem lembra algo distante e ideal - que o entendia, que sentia a sua solidão como se fosse a minha, porque no fundo também eu era um animal ensinado para amar - é isso que recebemos dos nossos pais nos pueris anos da  nossa vida - mas que felizmente ainda me sentia amado. "Entendo-te", disse-lhe. "Entendo a tua profunda solidão". Ele ficou mais aliviado com a minha comiseração. Foi um momento intenso. Três segundos fortes. Depois brincámos mais um pouco. Ele foi buscar a bola. Eu atirei o pau para ele ir buscar mais duas ou três vezes. Depois fui-me embora. Fechei a porta do jardim. Se eu soubesse que ele se podia tornar outra vez um lobo, teria a deixado aberta, ainda que me seria difícil explicar aos donos a hipotética decisão. Mas eu sabia que ele jamais seria um lobo. Como eu jamais serei um homem incivilizado. Afinal nós que temos tanta coisa, amigo cão, é pena que nos falte, às vezes ou tantas vezes, o amor do outro e a floresta.

17/12/2017

O regresso


               ao Izidro Alves

Amplo
por dentro e fora
desambiguo
o homem regressa em correria
como se fosse um vento
enredando os tojos e as giestas
 na subida da serra.

Lá em cima, ou lá em baixo
— que importa a altitude
quando estamos perto de casa —
os sinos já não dobram a finados.
Agora  repicam  as bodas entre ele e ele:

É Natal outra vez.


13/12/2017

O que caminha, quando caminhamos ?

Hoje uma pessoa muito especial para mim, escreveu entre as várias frases de um email que me dirigiu: "A vida segue o seu caminho com os nossos passos". Encontrei nela tantos e férteis significados que decidi guardá-la aqui. Como se este blogue fosse a caverna do Ali Baba e dos quarenta ladrões de frases.

03/12/2017

Deus é a nossa mulher-a-dias de Adilia Lopes

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a vida
porque achamos
que não presta

Deus é a nossa
mulher-a-dias
que nos dá prendas
que deitamos fora
como a fé
porque achamos
que é pirosa

Adilia Lopes em " Florbela Espanca Espanca". Editora Black Sun.Coleção: Impossible Papers.

25/11/2017

Tardolítica

A meia idade
é a luz possível
numa tarde chuvosa.

É um chá sem mel
na garganta ressequida que procura
uma cantiga  ainda interior.

A tarde cai de costas.
Arranca o pano preto do último espetáculo
onde foram cosidas as poucas estrelas que me guiavam.





17/11/2017

Se for possível

Não quero me faças ganhar, quero que me ensines o que fazer com a derrota
Não quero que me faças viver eternamente, quero que me ajudes a morrer com dignidade
Não quero que mantenhas saudável, quero que me ajudes a aceitar a doença e a dor
Não quero que me faças rico, quero que me conduzas à casa onde preciso de pouco para estar em paz
Não quero que me faças famoso, quero que me ajudes a dissolver nos outros como um peixe solúvel
Não quero JÁ! Quero que seja o teu tempo a decidir para quando e quanto e onde e porquê
Não quero que me respondas, quero apenas sentir-te chegar nos anjos com asas escondidas e olhos benevolentes que me envias
Não quero ver o teu rosto, não
Não estou preparado para tal momento
Logo me ardiam os olhos ou cresceria em mim uma soberba, primeiro, prateada
E depois demasiado pesada para carregar aos ombros

Se for possível, deixa-me sofrer por uma crença
Lamber o chão com orgulho
Mendigar abraços e beijos entre os mendigos
Viver nesta intermitente busca de palavras para que um dia quiçá me possas ouvir
Através daqueles com quem tive a graça de falar
É isso que espero contra toda a esperança
E esperar contra a esperança, é que é difícil, não é?
Então, perdoa-me a ambição, mas é isso que eu quero

Detalhe do "Paraiso" extraído do  tríptico O Jardim das Delícias Terrenas (c. 1503 - 1510), de Hieronymus Bosch



09/11/2017

O MITRA


A título irónico nasceu nas redes sociais um movimento chamado MITRA, o acrónimo significa "Movimento pela Independência Total da Região da Amadora". Houve logo algumas adesões e eu aderi com um singelo "gosto". Num tempo de discussão sobre a independência catalã ou sobre a sempre adiada regionalização do território nacional, é desanuviante que alguém se lembre que criar a titulo humorístico o MITRA. O humor como devem saber é um assunto muito sério, por várias razões. Uma delas é que serve para dizer o que não se pode dizer. Era este o expediente do bobo da corte ou dos humoristas contemporâneos.

A parte séria da questão é que somos uma cidade maltratada e humilhada pelos meios de comunicação social, porque acolhemos a diferença, porque não tivemos alguns cuidados urbanísticos a partir dos anos 50-60. Enfim, nada que não se resolva com uma boa gargalhada e este movimento promete-nos algumas. Lembrando o anónimo poeta-sapateiro Bandarra que escrevia versos contra a governação espanhola de Portugal no século XVII, também eu me lembrei que o Mitra precisava de um Bandarra da Porcalhota e decidi candidatar-me com esta quadra:

Jamais pela ideia ou alma me passou
Este novo desejo que tanto me excita
De nas redes sociais dizer que sou
Simples e orgulhosamente um Mitra


PS. Espero que chegue em breve ( para aí uns 500 anos) aos manuais escolares


27/10/2017

A folha da nespereira

E o gato sentado olhava a nespereira e esperava  como só os gatos sabem. No cimo da pequena nespereira, nasceu uma ponta felpuda, pueril. Todos os dias o gato cheirava insistentemente a exígua aparição. Coloquei eu também algum cuidado e atenção naquele subtil fenómeno. Regava com água mineral e coloquei um pequeno lápis velho a servir de estaca, não fosse a nespereirazinha partir-se. O que seria aquele pequeno novelo disforme que apareceu numa frágil árvore guardada num vaso plástico numa daquelas marquises suburbanas quentes e desarrumadas ?

Passados alguns dias, aquele rebento tornou-se uma folha a que chamei a grande esperança. Poderá haver esperança maior que ter fé, paciência e cuidado em algo tão pequeno e inútil?


20/10/2017

Inquérito

O que dizem uns aos outros os homem antes de torturarem ?

O que diz a si mesmo o homem antes de torturar alguém ?

O que diz o homem a si mesmo antes de se torturar ?


Responda a este inquérito de três perguntas apenas em: https://goo.gl/forms/P2N8bkXzCQ8J3l952

16/10/2017

Em silêncio

Encontro, no meu dia-a-dia, muitas pessoas apaixonadas por Jesus Cristo, bem como pela ética e mística cristãs, mas que continuam teimosamente a afirmar-se ateus. 

Pergunto: Não terão eles a omitir a sua conversão, para manterem o seu status quo  na hierarquia política ou social que os colocou no lugar que  ocupam ? Da mesma forma que faziam aqueles padres que - no final do livro e filme "Silêncio" de Shusaku Endo e Martin Scorsese, escritor e realizador, respetivamente -  sobreviviam como apóstatas, resguardando em silêncio a sua devoção por Cristo.  

05/10/2017

O que é silencio ?

Silêncio
é ver a  pequena nespereira crescer
num banquinho sentado 

Silêncio 
é dar um novo nome
às ruas por onde passámos 

Silêncio 
é  grito inesperado
do nada 

Silêncio 
é o bem-estar do poema
quando chega ao caderno cansado 

Silêncio 

Até quando ?


04/10/2017

A existência

Ao invés do que escreveu René Descartes, quando mais pensamos, menos existimos. Porque a razão é um elemento absorvente da diferença, da nossa individualidade. E como poderíamos existir se apenas nos deixássemos orientar pela razão ? E até onde é possível ser razoável sem amachucar de forma irreparável a nossa forma exclusiva de percepcionar a vida ?  

12/09/2017

O barqueiro

Cena do filme "Dead Man" de Jim Jarmush com Gary Farmer e Johnny Deep


Os poemas não se explicam, sempre ouvi dizer e de certa forma concordei. O que não quer dizer que não tenham explicação. Neste caso, sinto-me na obrigação de explicar que este barqueiro que nos fala o poema que acabei de escrever e abaixo transcrevo é uma personagem do filme de "Homem Morto" de Jim Jarmush. O filme fala-nos de um barqueiro índio que conduz um homem perseguido e aparentemente condenado ( o ator Johnny Depp) dado o poder dos seus perseguidores, rio abaixo, até ao reino dos mortos. O barqueiro confunde o homem com o poeta inglês William Blake. Mais uma vez, Jim Jarmush não perde a oportunidade para relembrar os seus grandes poetas, como o fez relativamente a William Carlos Williams no seu mais recente trabalho "Paterson". Mas regressando à sabedoria da aceitação da morte personificada pelo barqueiro que nos leva serenamente ou não pelo rio abaixo até ao ocaso da vida, apenas tenho a dizer que a aceitação da condenação é absoluta liberdade. O barqueiro neste processo toma o lugar do pedagogo, um facilitador para esta enorme experiência que é a aceitação da morte.


O barqueiro

Ao homem quase  morto
é preciso encaminhá-lo
ao seu destino nupcial,
onde aquele silêncio
— que  a eternidade entoa —
apaga o ruído  nervoso
das rodas dentadas
que fazem o sol girar. 

Assim faz o barqueiro
levando gentilmente o homem quase morto
pelo doméstico  rio até ao indistinto mar.


06/09/2017

Exercício espiritual de José Tolentino Mendonça

O poema "Exercício espiritual" pode parecer uma abordagem suicida ou um daqueles momentos em que o poeta se sente enjaulado num cubo egocêntrico, mas não é. Este pequeno poema de Tolentino Mendonça é uma possibilidade de esperança de que ele mesmo se apercebe num curto momento de clarividência. É uma faísca ("dar agora meia dúzia de passos"), um prenúncio de coragem("mas de olhos vendados"), como alguém que oferece as mãos e os pés aos pregos romanos ansiosos por beijar a fortaleza da cruz. Mas a cruz que o poeta nos fala é de outra natureza ("arriscando em vez de tropeções habituas"). Não tem corpo, não é uma estrutura pré-construída e previsível - nada disso. É uma queda profunda à procura de um mistério. É uma viagem de sentido descendente sem fim e tratando de forma irrelevante tudo o que está antes do momento em que ela acontece. Agora ouçam se tem ouvidos:

Exercícios Espirituais

Devem existir maneiras de ir mais além
do pequeno fracasso
dar agora meia dúzia de passos 
mas de olhos vendados
ver a vida romper-se no governo do vazio
arriscando em vez de tropeções habituas
a queda infinita

(José Tolentino Mendonça, 2017)

Nota: Este poema está incluído no livro Teoria da Fronteira, publicado em junho de 2017, pela Assírio & Alvim.

30/07/2017

Insónia

São três da manhã. Estou num hostel à beira do rio Arade. Um trio de espanholas surdas-mudas entram no hostel e acordam-me. Ó ironia das ironias  ser acordado por mudas. Preciso de dormir. Não consigo deixar de ouvir o arrastar dos pés e as suas vocalizações estranhas. Pego no telemóvel, coloco os headphones e começo ouvir o "Adagio" do Samuel Barber. A música completa a vista  histórica de Silves. Obrigo-me a escrever:

Fúnebre canção  de embalar
que vagueia pela noite dentro
descendo ao fundo do poço,
já indistinta do silêncio,
resgata e adormece-me
como se eu fosse a coruja 
à espera do sol raiar.

As mudas desligam a luz, quando acabo de escrever este poema, este estribilho. Acordam ao longe o galo e as galinhas da Horta Grande. Adormeço eu imaginando o ultimo voo da coruja que se vem deitar.
Silves à noite, vista da ponte romana (foto Miguel Lapas)

17/07/2017

Dois docs, duas mulheres, duas formas de rebeldia

Acabei de ver dois docs comoventes. Um baseado na biografia da pintora Paula Rego. O outro, na cantora norte-americana Janis Joplin. Ambas marcadas pela sua condição de mulheres muito especiais. Têm histórias de vida absolutamente pungentes.  A americana brilha e explode, com a velocidade previsível de uma estrela pop nos States dos anos 60. A portuguesa tem uma atitude introvertida e transforma as suas ansiedades, forças e subjetividades num longo percurso pictórico. Não vive tão intensamente como Janis Joplin e frequenta meios mais serenos. Por isso resiste, insiste e vence. Aliás, ambas artistas vencem o tempo, porque ficaram na história do século XX.

O documentário "Paula Rego, Histórias e Segredos" é uma oração ao ser humana. Chamo-lhe oração murmurada, porque a linguagem da pintora é uma espécie de murmuração do seu subconsciente - uma confissão criptada. "Janis: Little Girl Blue" é um grito, daqueles gritos nascidos no pós-guerra, mas não só. Um grito  para onde convergem muitos silêncios contidos, o silêncio dos negros (Jazz, Blues) ou o silêncio dos humilhados, renegados e falhados. E talvez seja este o drama interior de Janis na década do amor (anos 60): Querer amar todos e ser amada por todos. Uma missão que se revelaria impossível para uma  rapariga gorda e com acne de Port Arthur (Texas) para quem o palco se tornou a melhor forma de ser finalmente amada. Morre de overdose em 1970, como se Janis pudesse desaparecer.




  

04/07/2017

Suave vulcão

para a Fatinha

O teu pé
limo sobre a lava
abre em combustão a rocha 
quase adulta
e salgada

Ao largo, 
o vulcão estremece,
mas não acorda
quando o cardume a medo o contorna

Veludo azul e verde
o teu pé tecido de paciência
como uma suave desforra

28/06/2017

O caminho

"Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso é o caminho que leva à perdição" Mateus, 7:13


O caminho é estreito e a floresta densa
É natural que a palavra se perca
enredada em raízes ou ecoando sem tino
contra os troncos das árvores

O caminho é estreito
e, milimétricos, os passos que seguem
pela longa viga suspensa sob confusão mental

O caminho é estreito
tão estreito que só tu cabes nele
Mas se o percorreres
convergirás em mistério
para a praça maior dos outros

O caminho é estreito,
assim como os passos são apenas dele

Avança



16/06/2017

Uma trindade simples

Como alguém que rasura na casca de uma árvore, não posso deixar de um "Luís Loves Frank Capra" no tronco do Àrvore com Voz.

Os TVcines decidiram passar três filmes (mês de junho) do italo-americano Frank Capra. Todos eles foram nomeados e galardoados com óscares da Academia. Parecem westerns urbanos, com os heróis e os vilões bem definidos, uma história de amor a acompanhar e os heróis sempre a vencer o mal de forma épica, deixando um lastro de moral bíblica ao longo de toda a película.

Que a terra te seja leve, Frank, porque realizaste três obras que me divertiram e inspiraram-me a tentar ser um ser humano melhor.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Mr._Deeds_Goes_to_Town

https://pt.wikipedia.org/wiki/You_Can%27t_Take_It_with_You

https://pt.wikipedia.org/wiki/Mr._Smith_Goes_to_Washington
Mr.Deeds goes to Town (1936)
You cant´t take it with you (1938)

Mr.Smith goes to Washington (1938)

06/06/2017

Ensina-me

Ó meu Jesus Cristo
Ensina-me a caminhar sobre as águas
A não temer o impossível
Ensina-me a amar a morte, a enfermidade e o inímigo

Deixa-me dar-te a mão, Jesus,
e caminhar ao teu lado como um apostolozinho cego e mudo
E com a outra mão, deixa-me ajudar o meu irmão
a carregar a sua cruz, como fez o cirineu

Se Tu pudesses falar por mim,
apenas com a expressão dos meus olhos,
um silêncio reparador alastraria à minha volta
E nas trevas carnudas da minha cegueira
nasceria a primeira manhã 

30/05/2017

Da humildade

Ó poeta não te perguntas porque é que depois de escreveres uma dúzia de versos te surge na alma aquela impressão insolente de que fizeste uma grande obra ?

Tens mesmo a mania das grandezas ou terás, em vão, tentado falar com Deus ?

Terás conseguido falar com Ele ? Se Ele te tivesse escutado, não ficarias com esse sabor de superioridade e glória que te aflora aos lábios, julgo eu, neste meu juízo limitado pelo tempo,  espaço e  corpo.

Temo mesmo que não haja criação humana, mas apenas uma interpretação insuficiente ou uma arrumação temporária da obra de Deus.

Se calhar o universo inteiro não passa de um átomo de uma molécula de um pelo que cresceu na axila Dele esta madrugada.

Porque é Deus, ó poeta, que tudo escuta e cuida. É da sua natureza este cuidado tão intenso como extenso. Ele, sim, é o poeta que escreve, conhece e risca - piedosamente, creio eu -  todos versos.

20/05/2017

Finisterra, porque sim

Eu sei, tu sabes
que sou um projeto estúpido da terra
desses que se soltam das margens
como um telemóvel sem a tecla de atender
e calcorreando vou de rio em rio
até ao incógnito mar
no máximo dos máximos
passo a três léguas daqueles cabos velhos
que dobram os continentes sem saber porquê

Eu sei, tu sabes
que hoje não há tempo para poemas
mas tão-só para mapas astrais
e sistemas de equações
de índole tão indeterminada como uma fakenews

"Rocky reef on sea shore" de Caspar David Friedrich 


12/05/2017

Entre o céu e a terra

Pintura tonalista de Edward Bannister


As religiões são gramáticas com deficiências naturais e humanas. Elas permitem aos humanos nomear ou interpretar o transcendente. É natural que as religiões à semelhança das línguas dos povos tenham uma matriz geográfica, étnica e política. Entre o transcendente e o imanente o que pode um mortal senão seguir o caminho estreito entre ambos. Eles próprios que alternadamente se atraem e repelem.

"Terra
sem uma gota
de céu.

(...)


Céu
sem gota
de terra."

in "Turismo" de Carlos de Oliveira

Há ateus de uma religiosidade tão exigente que nenhuma gramática lhes parece suficiente para a fruíção ou interpretação do transcendente. Ninguém escapa a este anseio de infinito, de partilha caritativa,  de misericórdia e justiça, de uma verdade tão universal e genérica que possa servir de referência a todos nós - ou mais poeticamente - um ponto de fuga comum para onde todos as caminhadas converjam. 

05/05/2017

A falência das palavras

Nunca encontrei palavras, nunca
Tocá-las? Queria eu, queria
Às vezes algumas das suas sombras recônditas
surgem-me  espectrais em ínfimos poemas
Em outras alturas, ouço-as ao longe
aos turbilhões  em solilóquios impetuosos
e mais tarde exaustos
Quando tento agarrá-las, já lá não estão
Acredito que as palavras foram reais
há  muito tempo atrás
Justificavam duelos e amparavam amores
E alguns deles, até só viviam nas e das palavras
Agora todos os poetas que conheço
abriram falência por causa delas
e em segredo mudaram de ramo
ainda que finjam que não

Que pena já não haver ligação nenhuma
entre as palavras e as coisas
Nem que fosse uma pequena economia
destinada apenas às mais belas



21/04/2017

Testemunho de um peregrino por alturas do Pesah


Era ainda criança, quando vi o nazareno, na estrada da Galileia, repetido no pó magro que mesmo desfocando anuncia. Caminhava entre uma turba de sangue borbulhante - mais tarde derramada sob as patas incoerentes dos leões.

"Não há pai sem filho." - pensei - "Não há filho que não amemos".

Eu juro que vi o nazareno no espelho fosco daquele pó tão leve que chegava ao céu, naquela carne interina que lentamente se transubstancia em palavras e verdade.

Na verdade vos digo, eu vi o nazareno e lembro-me disso muito bem. É como se o visse todos os dias, passando e  olhando-me, naquela estrada que vem de coisa nenhuma para o templo de Jerusalém.


Algures perto Jerusálem, 3 de abril de 33 D.C.



19/04/2017

O Homem Só

Quando olhamos para um fenómeno pela perspectiva sociológica, usando as ferramentas analíticas para estudar o caso, obtemos política, legislação e eventualmente transformação. Quando olhamos para um fenómeno e vinculamos a nossa atenção num indivíduo apenas, temos  literatura, emoções e drama. É de facto esta última perspectiva que mais me interessa: a ovelha perdida, a moeda reencontrada ou o regresso (ou não) do filho pródigo.

Se contarmos a história do indivíduo, em detrimento, da do grupo ou da classe a que ele pertence, talvez ele se sinta protegido, porque agora está visível e tentou-se compreendê-lo. Talvez narrar o seu drama seja o pequeno contributo para que o "Homem Só" perca aquilo que o filósofo José Gil chama de "medo de existir" no seu livro "Portugal, Hoje - O Medo de Existir"


12/04/2017

Crianças e animais - duas metáforas sobre a existência

Dois livros que falam de quando as coisas eram tão más e injustas que ao adaptarem-se a elas, as personagens cresceram e libertaram-se daquela forma  como só acontece nas histórias imaginadas. O primeiro livro chama-se "Capitães da areia" e foi escrito em 1937 pelo brasileiro Jorge Amado. Aqui um grupo de crianças sem família, nem lar fazem o que podem e não devem (ou será que devem?) para viver sem estas coisas. Na verdade, ninguém sabe viver sem elas, e por isso, aqueles rapazes reinventam um lar, uma mãe, um pai, um deus, uma causa comum para lutar.

O outro livro chama-se "O apelo da selva" foi escrito por Jack London, em 1903. Na consciência  de Buck, um cão arraçado de São Bernardo e Pastor escocês, London conta a aventura do cão de um juiz que vivendo num ambiente entediante e civilizado -  aparentemente justo e protegido - tem uma existência banal e digna. Mas mesmos os sítios bem frequentados têm as suas ratoeiras. Um ajudante do jardineiro do  seu dono tem o vício do jogo. Pior do que isso, vive na ilusão que descobriu um sistema que lhe permitirá enriquecer. A vida financeira do jardineiro não lhe corre bem, obviamente. E Buck é raptado e vendido pelo jardineiro a uma rede que angaria cães para puxar trenós. Descobriu-se muito ouro no Canadá, junto ao Árctico, onde começara uma corrida ao bem mais cobiçado do mundo. A neve e os trilhos gelados só podem ser percorridos por trenós puxados por cães de envergadura. A animalidade dos homens estimulada pela necessidade e ganância - uma fronteira estreita as separa - surpreende então Buck de uma forma assustadora e brutal. Os primeiro tenpos são de angústia. Buck sofre uma crise existencial derivada desta mudança. A bestialidade a que ele é sujeito, abala-o mas não destrói. Ninguém está suficientemente preparado para a selvajaria humana, nem mesmo um cão.

Buck leva então a  consciência até ao âmago da sua natureza, da sua ascendência de lobo. E quando a criação do Homem se junta à da natureza, nasce um herói, esse mito inspirador e platónico que não existe. Ainda assim Jack London cria-o de uma forma inflamada e sofrida como um parto difícil, inspirando-nos com a generosidade temerária deste Cão-Lobo / Homem-Animal,

Por debaixo da camada sociável e mansa do Homem, existe sempre esta pulsão primária que nos impele à violência como forma de resistir ao medo. A guerra é um exemplo acabado deste processo. Por isso, "O apelo da selva" é daquela literatura de sempre para sempre, um verdadeiro clássico que nos deixa este aviso: Não humilhem um manso e muito menos uma classe mesmo que esta seja tida como tal.



"O Apelo da Selva" de Jack London

 Tradução: Emília Maria Bagão e Silva
 Editor: Livraria Civilização Editora
 10,40 euros (Wook)



"Capitães da Areia" de Jorge Amado
Editora Bis
7,5 euros (Wook)














06/04/2017

Os prazeres e os dias

"Sombria dor dos céus de cinzento vestidos;
Tristes também, se azuis, nas tão raras abertas
Que deixarão então, nas planícies cobertas,
Filtrar os mornos prantos de um sol incompreendido"
De:Marcel Proust em "Os prazeres e os dias" (Trad. Luíza Neto Jorge) 

Alverca do Ribatejo - Foto minha tirada em março de 2017








05/04/2017

Perdi o telemóvel e achei uma bem-aventurada

Perdi o telemóvel. Quem o encontrou, não o desligou. Telefonou-me (um colega da achadora) para o telefone fixo, dizendo que queria entregá-lo ao dono. Fui buscá-lo. A pessoa que o encontrara tratava-se de uma africana, analfabeta e empregada da limpeza. Ao devolver-mo, disse-me:"Só lhe peço que faça o mesmo, se encontrar o  telemóvel perdido de alguém". Lembrei-me das palavras de Jesus, relatadas por Lucas, no Sermão da Montanha: "Bem-aventurados os pobres, porque será deles o Reino dos Céus",

Auto-Retrato (1992)


21/03/2017

Ondjaki na Amadora

Ondjaki tem 40 anos, e já é um grande escritor angolano. A sua vasta bibliografia e a lista de prémios que lhe foram atribuídos não deixam qualquer dúvida. O melhor é mesmo lê-lo. Mas se quiserem, ouvi-lo e falar com ele, na próxima quarta.feira (22 de março), pelas 18:00H na Biblioteca Central da Amadora. Ele e a Editorial Caminho vêm até à cidade da Amadora lançar o seu novo livro "O Convidador de Pirilampos". Mesmo que chegue atrasado, esperamos por si.

Uma organização Clube Literário da Amadora, Amadora - Passado, Presente e Futuro e Biblioteca Piteira Santos - Amadora


20/03/2017

Tenham esperança!

Aos meus amigos mais jovens que andam tristes com a eventual falta de emprego compatível com as suas expetativas, aos pais daqueles que viram os filhos emigrar, só tenho duas palavras para dizer-lhes: "Tenham esperança". Antes da crise, Portugal tinha 35 empresas entre as 100 maiores da Península Ibérica. Agora tem apenas seis. A culpa não é nossa, nem deles. São circunstâncias da história. Tenham esperança, porque é no crisol fogo que se purifica o ouro. Os povos que acreditaram nos momentos difíceis, ergueram-se das cinzas. Também nos vamos erguer. Com paciência e esperança.

15/03/2017

o dom

A palavra é um dom. O outro é um dom também. Logo a tua palavra é um dom e a do outro também. Usa-a com cuidado e generosidade. Escuta-a com atenção e atento aos sinais. A palavra é uma representação espiritual, uma centelha, uma faísca capaz de incendiar ou extinguir um fogo.É uma forma de conversarmos com os outros e connosco, de descobrirmos, ou pelo menos, de procurarmos. Viva a palavra. Viva o outro só porque é o outro, ou seja, porque nos complementa e expande. 

03/03/2017

Dramatizar, segundo Bloom

Enquanto lia uma apresentação sobre a avaliação no ensino, deparei-me com o verbo "Dramatizar". A função de dramatizar encontrava-se entre  outras derivadas do verbo "Aplicar".

Aquém de "Dramatizar" estavam o "Conhecer" e o "Compreender". Para além, ficavam os verbos "Analisar", "Sintetizar" e "Avaliar".

Quem escreve para  teatro deve ter esta escala verbal em conta: Para "Dramatizar" deve aplicar o que se conhece e compreende e deixar as tarefas de analisar, sintetizar e avaliar para quem  aborda o guião, esteja esse elemento envolvido na criação do espetáculo ou apenas na sua contemplação.




27/02/2017

Uma palavra medonha, "Sofrimento"

Dizem-me que Deus é amor. Mas só poderemos conhecê-lo, ao amor Dele, profundamente, se nos for dada a graça de sofrer.

Olho  Jesus Cristo suspenso na cruz, em terrível agonia, e compreendo objetivamente a dimensão e a natureza do seu amor por nós. Foi também através do meu sofrimento, tão comezinho e patético diante do dele, que percebi de forma mais consistente esse conceito do amor num sentido mais lato, mais universal. Esse amor que através do sofrimento - e podemos utilizar no contexto cristão a palavra "paixão" - se transforma em compaixão, em caridade e quiçá, talvez certo dia, em liberdade e alegria.

Dou-te agora um conselho: Fecha os olhos, os ouvidos e a boca. Conta a três e lança-te no buraco escuro do sofrimento. Tem esperança então, irmão/irmã, que Ele Te acolha nas Suas mãos. Ouvi dizer, e nesse momento fiquei atónito, que se creres na tua salvação através Dele, "nada te faltará!".  "Nada me faltará?", soletrei de mim para mim naquele momento.

"Nada!", tenho esperança que  Alguém assim certo dia me responda.

16/02/2017

Bem-aventurados os gentis

Era um dia qualquer e uma hora qualquer perto do almoço. Estava triste e angustiado. Ansioso. Tinha feito toda a manhã o que não se deve fazer: pedir uma ação de graças em meu favor. Lembrei-me que estava perto da   igreja do Campo Grande, onde ali mesmo,  junto ao rebuliço do cruzamento com a avenida do Brasil, eu muitas vezes me recolhia sozinho para rezar. Acerquei-me do templo. Antes de abrir a porta, ouvi uma voz feminina fazendo uma leitura. Admirei-me. Empurrei a porta da esquerda da igreja que não cedeu. Forcei a da direita e ela abriu-se. Decorria uma missa.

Nas últimas cadeiras estava uma mão cheia de jovens adultos, na casa dos trintas, vestindo  trajes normais, daqueles que se usam em Lisboa nos dias de trabalho. Benzi-me e coloquei-me  no meio deles. As suas vozes rezando, ecoavam dentro de mim uma comoção estranha, causada em parte pela esperança  daquela frescura espontânea - algo arredada das igrejas que frequento - e por outro lado, pelo facto da sua presença poder dever-se, como a minha, a uma angústia premente qualquer.

A missa foi avançando e as vozes em redor enchiam-me o coração. Estava agora cada vez mais comovido. Cheguei mesmo a pensar em colocar os óculos de sol para esconder as lágrimas. Olhava o Senhor agonizante na cruz e pensava: "Sofreste para que nós fossemos homens e mulheres alegres. Desculpa-me esta tristeza de quem tem ainda tão pouca fé".

Na hora da saída, gentilmente um daqueles jovens adultos abriu-me a porta. Lembrei-me que lera no dia anterior, na nova tradução bíblica que  Frederico Lourenço fez a partir do grego: "Bem-aventurados os gentis, porque herdarão a terra"** Pensei para mim: "Obrigado, irmão. Que o teu gesto se espalhe pela cidade ".


** Nas anteriores traduções a partir do Latim, no "Sermão da Montanha", onde Jesus Cristo prega as bem aventuranças, lê-se habitualmente "Felizes os mansos, porque  herdarão a terra" Mateus 5:5. E curiosamente na nova tradução o adjetivo "mansos" é substituído por "gentis", indo ao encontro do significado original já que os evangelhos foram escritos em grego. 


Igreja do Campo Grande

12/02/2017

Aceitar, não é resignar

Cuidar dos feridos, não é apascentar a guerra. Amar os pobres, não é gostar da pobreza. Acolher os transviados, não é ser conivente com o vício. Homenagear os mortos, não é glorificar a morte. Em conclusão: Aceitar, não é resignar. Aceitar é o que nos resta quando não há nada a fazer, quando resistir significa partir, quebrar, ou menos, desgastar-nos sem porquê. Aceitemos, portanto, sem nos resignarmos.


18/01/2017

O lado possível da transformação

Vivemos irritados com alguns traços da nossa personalidade. Não queríamos ser vaidosos, tímidos, gananciosos e muitos outros traços da nossa natureza que gostaríamos de anular ou lentamente enfraquecê-los. Muitos tentam esta mudança durante semanas ou meses, mas passando algum tempo, todo o esforço foi em vão e as características voltam manifestar-se como sempre. Na verdade, não podemos anular o que a nossa componente genética e a nossa matriz cultural nos atribuiu. O que podemos é aceitá-la. E ao perdoar as nossas próprias fraquezas, ficaremos mais apaziguados espiritualmente. Esta transformação de aceitação será  pedagógica, porque nos ajudará também aceitar o comportamento do outro. Compreender e aceitar aquele traço da sua personalidade que nos irrita - ou que pode mesmo a fazer com que o odiemos - vai fazer maravilhas, se não na relação com o outro,  pelo menos no nosso próprio conforto espiritual.  Conclusão: Aceita-te e vais aprender a aceitar o outro. Esta é a transformação possível da nossa personalidade, a aceitação.


12/01/2017

"Sociedade do Cansaço"

Cada vez mais encontro mais pessoas cansadas ou esgotadas no meu dia a dia. Muitas delas, são mulheres que trabalham em média mais do que homens. Se queres perceber o que nos está acontecer a (quase) a todos, recomendo a leitura da "Sociedade do Cansaço" (2014) do filósofo Byung-Chul Han. Quem quiser aprofundar ainda mais este tema pode ler ainda a sua obra mais esclarecedora "Psicopolítica".





    Autor: Byung-Chul Han
    Edição: Relógio d'Água
    64 páginas
    Custo: 12 euros

A tela de Penélope

Enquanto esperava o regresso do seu marido, Ulisses, a Ítaca, a bela Penélope foi assediada por muitos pretendentes que, argumentando que o seu marido havia morrido, esperavam desposá-la. Esta para conseguir fugir ao assédio, começou a tecer um tecido para a urna funerária do seu pai, dizendo aos pretendentes que apenas tomaria uma decisão no final daquela tarefa. No final de cada dia, Penelópe desmanchava a todo o trabalho do dia e recomeçava de novo na manhã seguinte. Assim o fez até à chegada de Ulisses à ilha de Ítaca.


09/01/2017

A Ilusão cósmica

Os espelhos trazem-nos
 a ilusão da alvorada.

Os espelhos que estão agora
por todo o lado
apenas refletem a labareda
que diante deles alguém acendeu.

Sim, podes tocar o espelho
sem que os teus dedos ardam.

Ó como é fluorescente e quente
a ilusão das chamas
quando ela te projete do frio.

E reduzido a cinzas
há-de o vento levar-te
para outro lugar irrefletível.

Serás outra vez a poeira
que entra pela porta
das casas baixas sem darmos conta.

Serás outra vez o primeiro naco de pó
à espera de crescer
crescer até à altura do espelho.


05/01/2017

Ofício exato

"Persistir em dar forma ao que permanece escondido na escuridão (e que jamais viste) poderá ser considerado teimosia inconsequente, mas, também, o mais puro dos actos do escultor" 

em "Breves notas sobre o medo", 
Relógio d'água (2007) de Gonçalo M.Tavares