29/06/2016

"Academia das Musas" de José Luís Guerin

Um professor de Filologia  na Universidade de Barcelona ensina Teoria da Poesia. Recorre a Dante, às suas criações literárias, às suas paixões. Diz que o amor é uma criação literária e que a poesia e as suas derivações, como a música ou a dança, transformam os animais em seres humanos. Fala do amor platónico de Dante Alighieri por Beatrice, do caso de Paolo por Francesca,  relatado no "Inferno". Este adultério entre cunhados inicia-se no momento em que ambos lêem uma passagem onde Lancelot e Guinevere se beijam num livro de cavalaria medieval. O professor tenta provar que o amor é coisa mental e não carnal. Entre as alunas e alunos, tem quatro que ganham importância durante o filme-documentário. São as suas musas. A esposa do professor sofre, mas aceita. O professor diz-lhe que ensinar é também seduzir. No final, fica alguma dúvida sobre a natureza das musas e dos poetas. Quem é quem ? Não serão também os poetas musas acidentais ? Não será essa a finalidade da poesia: não deixar que a humanidade se desintegre?

O professor fala ainda de Orfeu e de Euridice. Orfeu falou e cantou aos mortos para trazer à vida a sua amada, quando esta se encontrava já no submundo dos mortos. Fazer poesia é falar com os mortos, estejam eles impressos no ADN ou na linguagem que eles mesmo inventaram para nós, os vivos. Na verdade, todo o poeta sabe disso e tem a secreta ambição de falar com os vivos depois de morto.

É também disto que trata  "Academia das Musas" do cineasta catalão José Luis Guerin. O filme de 92 minutos é uma aula do ponto vista formal e conceitual. Está no Monumental no Saldanha. Tem várias sessões, mas a das 19:45 dá muito jeito. E o preço dos bilhetes é de 5 euros. Vá ver o filme e ajude a salvar a humanidade.


24/06/2016

Temeridade

Tememos a polícia e as finanças
Tememos a nossa vontade e a do nosso irmão
Tememos a força e a fraqueza
Tememos até a liberdade

Então porque não Te tememos, Senhor  ?

15/06/2016

A riqueza (e angústia) das nações



Confesso que em tempos idos namorei com os mercados. Agora que eles me "torcem o nariz", declaro-vos a minha antipatia por eles. Não pensem que vou "andar à galheta" com algum dos seus arautos, correlegionários, doutrinados ou doutrinadores. Nada disso. Procuro antes um argumento categórico, uma corrente filosófica capaz de arregimentar um exército ou pelo menos justificar-me os atos diante dos meus ascendentes, descendentes e irmãos.

Temos o mercado de capitais, o bolsista, o cambial, o de trabalho, dos jogadores e o que mais engraço, o mercado local com alfaces murchas e nêsperas pequenas, mas verdadeiras.

Os mercados põem e dispõem, assustam-se e irritam-se. São poderosos como os deuses do Olimpo e, por isso, devemos temê-los e jamais ofendê-los ou desafiá-los. Lembrai-vos das tragédias! Talvez por tradição, os gregos metem-se amiúde com eles.

E porque não há eremitério que se coadune com a minha consciência, nem com o meu comodismo, vou andar por ai como uma erva daninha, misturando-me na multidão, tentando escapar à sachadelas de um qualquer mercado que se lembre de se entreter a limpar a sua horta.

14/06/2016

A mais longa coação

A mais longa coação dos corpos
ocorre sob regras ditadas pelo senhor Kant
e, em ondas sublimes,
recolhidas pelo centésimo tal
sentido oculto do xamã

A mais longa coação dos corpos
substitui a razão por um sussurro
nascido de um brilho instantâneo, solúvel,
como a última faisca verde daquele sol
que por detrás do mar se põe,
quando percebemos sem querer
a suavidade das penas, dos pelos
na derradeira tarde de verão

A mais longa coação dos corpos
são os teus lábios entreabertos,
ora murmurando, ora apelando
ao gosto mastigado, mas sincero,
dos meus




07/06/2016

Somos assim, segundo Dostoiévsky


Anjos cadentes

Tenho uma mala castanha
e inexplicável
chamada Deus.
Quando a abro,
tenho tudo o que preciso.
Até o infinito arrumei por lá.
Abro-a para orar três vezes ao dia.

Depois fecho-a
e retomo a angústia alucinante da queda livre.