27/10/2015

Cara e coroa

Quem afinal lhe iluminou o caminho ?

O caminho que ele ainda pisa a medo com os seus pés mudos 
e que entrevê  com dificuldade entre a poeira que esconde
o seu destino de caminhante cabisbaixo.


Foi um pássaro azul fluorescente que lhe saiu do peito 
ou  uma coruja feita apenas de vento que do pensamento lhe avoou?



24/10/2015

22/10/2015

parece infantil, dizes tu

As mãos rezam
góticas
arcos quebrados
suportando o peso
da prece
sem pressa.

Os olhos erguem-se
procuram
na copa das árvores
pássaros lunares
chamam-lhe anjos
parece que incendeiam o mal
com os seus lança-chamas estelares.


Parece infantil, dizes tu.
Mas a poesia e as crianças têm em comum 
esta simplicidade frágil

estranhamente invencível.

20/10/2015

Relativismo

Que os meios nunca justifiquem os fins, porque há valores absolutos ou de urbanidade que não devem ser violados. A vida é uma caminhada, um mistério e nunca um objetivo.

19/10/2015

Esperar

Espero contra toda a esperança.
A avenida que vejo já não existe.
Só um pássaro negro ficou
e  pia, pia, pia estridente e metálico
como se também ele soubesse.

Espero contra toda a esperança
e por mistério é isso que me anima.



Hoje não há caracóis


É sentado nas traseiras da cidade próspera
que Te escuto,
regressado à momentânea indigência dos plásticos
que esvoaçam entre árvores roídas pelo chumbo dos escapes
- aí mesmo onde os pardais ensaiam eloquentes discursos
para a próxima primavera

Sentado na pedra,
vejo correr o Outono
na direcção do sul, do sal,
da alegria fictícia que os habitantes inventam
para se esconder da invernia soletrada por poemas como este.

Passa o comboio.
Podia escrever uma ode ferroviária,
mas não tenho tempo.
Não há tempo na cidade das luzes fluorescentes,
onde as pretas limpam os restos do pó levantado
pela orgia das ilusões, pela tesão do mercado.

Os transeuntes passam olhando para dentro,
só na memória encontram o conforto
da festa de aniversário
onde à sombra de um largo sobreiro
estavam todos de novo presentes:
o pai, a mãe e as formigas
que passavam pelas ervas de uma avenida pungente.

Os  poemas têm a natureza de qualquer negócio.
Ganham, no seu fecho, o lucro que os afama.

Procuro assim as palavras convenientes (ou contingentes),
as mais encantatórias e ondulantes.

Mas a verdade, a que me obrigo, é um lugar gasto
por uma chuva miúda, persistente.

Procuro nos bolsos, apressado por um tempo burguês, as últimas palavras.
Hesito, pondero e pouco consigo dizer-te para além de
“caminha sem chapéu ou destino e deixa a barba por fazer”.

16/10/2015

Utopia e desejo

Dedicado ao meu amigo Luís do blogue http://tintanobolso.blogspot.pt/


O desejo é a coisa e a utopia, a causa. Porque  apenas esse desejo insaciado pode gerar esse lugar que não existe. Se houvesse a tal coisa desejada, desaparecia também a vontade de a obtermos. É  no desejo que nasce a utopia. Defini-la de antemão é estratégico. E depois será como  alguém que  olha sedento  para a água de uma fonte fresca e primaveril e caminha  eternamente sem a alcançar. Durante o caminho caiem uns chuviscos que logo são lambidos de forma insaciável. Não são o paraíso, mas uma lúgubre imitação. Os chuviscos são uma metáfora da existência, mas são eles que nos  permitem caminhar, caminhar sempre.

15/10/2015

Utopia

É preciso acreditar para ir mais longe. Precisamos de utopias, venham elas de onde venham: Da política, da religião ou da arte. Venham todas, mas com amor, misericórdia e piedade. Sem sonhos, não passamos de animais amedrontados e, às vezes, agressivos.

Nota: Utopia vem do latim e significa o "lugar que não existe". Ele não existe, mas dá-nos o sentido da caminhada.

13/10/2015

mistério

Se a dor é tua, também é nossa.
É deste atrevimento que nasce uma parte do mistério.

Santo Condestável


Corajoso, brandiu a espada e conquistou a terra. Agora, sentado e humilde, repousa o olhar num livro de horas, para ganhar o céu.




08/10/2015

Slava

Sabemos que estamos na presença de um grande palhaço quando, durante o seu desempenho, alternamos entre a vontade de chorar e de rir.

Slava






Algum consolo

Não chores pelo que perdeste, luta pelo que tens.

Não chores pelo que está morto, luta por aquilo que nasceu em ti. 

Não chores por quem te abandonou, luta por quem está contigo. 

Não chores por quem te odeia, luta por quem te quer.

Não chores pelo teu passado, luta pelo teu presente. 

Não chores pelo teu sofrimento, luta pela tua felicidade.

Com as coisas que vão nos acontecendo vamos aprendendo que nada é impossível de solucionar, apenas siga adiante.



Jorge Mario Bergoglio, Papa Francisco.

06/10/2015

Desfocados

Desfocados, porque partiram cheios de ilusões, ou seriam certezas absurdas ? Eles olharam-se ao espelho. Não conseguiram distinguir a coisa do seu reflexo e arriscaram. Afinal, já estavam habituados a viajar nos jogos de consola. Logo, Barcelona, Amesterdão ou Taiwan que diferença faz para quem já lutou contra exércitos fantásticos sem vidas infinitas ? Eles ficaram desfocados, mas apenas nos olhos enrugados pelos ventos salgados que sobem o Tejo. Os meus olhos, claro.

Foto de Gonçalo Fonseca

05/10/2015

A casa que honra os avós

Insondáveis pulsões, habitam a cave da casa. E só pelas estreitas janelas assomam a cor das labaredas que insistem em sobreviver na lareira antiga -  o verdadeiro coração da família. Pelas portas entra e sai o pão, o vinho e esculturas clássicas, onde ainda se notam algumas imperfeições de um cinzel cansado do fim do dia. Os jardins vestem a casa de flores e abelhas. Um gato  caminha cauteloso não vá algum ruído melindrar os anjos que por aqui persistem em cantar e tanger violas.  Por detrás das grades do jardim, a história passa e fica empedernida nas colinas da cidade. Mas a casa, não. A casa já não é história. Transcendeu-se. Os deuses  olham para ela como um lar do verbo “ser”. Depois descem até ela e deixam-se ficar suaves e inteiros como só eles sabem viver.

(Texto escrito no jardim da casa Roque Gameiro na Venteira Amadora)


Casa Roque Gameiro (Venteira - Amadora)

01/10/2015

Eixo Trafaria-Belém

    Para o Tiago e para a Beatriz




Uma sombra radiosa
guia-te sobre as águas.

Abre-as.

De calça arregaçada,
caminhas dentro do rio.
E entre as paredes liquefeitas,
tens impressões marítimas:
ruínas de barcos,
fazendo bolhinhas pueris,
ânforas romanas,
decalcando o prazer
nos lábios dos caranguejos.

O que podes afinal ali fazer,
se os teus olhos tudo criam
e a tua pele outrora partilhada com as coisas
já nada sente ou lambe ?

Resta-te avançar
nesse jeito turístico
e condenado a ver apenas
por detrás dos carreiros envidraçados
que a maré abriu,
enquanto levava as corvinas,
neste mês encantadas,
por este mar ali tão
finalmente.