31/08/2015

A caminho

Parti a caminho de mim mesmo. Terei tempo ainda de me encontrar ? Tenho esperança de pelo menos deslumbrar a minha silhueta lá longe, onde a linha do horizonte,  recortada pela serra, alcança o céu dos que partiram.

Como diz o professor Eduardo Lourenço: "O regresso dos mortos seria o verdadeiro paraíso". Nem mais, professor. Somos os mortos e dificilmente ultrapassamos a angústia antecipada de poder ver partir os que mais gostamos.

29/08/2015

Olhava-a

Olhava-a
Como se ela fosse
Uma moeda gigante
Vinda das trevas
Para pagar os legumes.

Aquele encantamento
Lambia-lhe o cabelo
Como fazem as gatas
Aos pequenos deuses
Que aquecem as casas
E os espíritos
Em dias de invernia.

Perante a distracção
Lúdica da criança,
A mãe insistia:
"Olha a Lua, filho,
Ali, ali".

Foto de Pedro Veríssimo - 30.08.15 - Carcavelos

27/08/2015

Escrito

Em árabe, a palavra que significa "destino" escreve-se "maktub", ou seja, "escrito" ou "está escrito".


26/08/2015

O mito de Cassandra


Cassandra era um dos dezoito filhos  do rei Triamo e da rainha Hécuba, monarcas da cidade Tróia, na época em que ocorria o confronto entre  esta cidade - actualmente fica na Turquia - e uma liga grega. Cassandra era bela e tinha o dom da adivinhação, porque os seus ouvidos tornaram-se tão sensíveis que podiam escutar as vozes dos Deuses. Cassandra recusou o convite do deus Apolo para dormir com ela e, como vingança, o deus da beleza e da razão lançou-lhe a maldição de jamais alguém acreditar na suas profecias.

Quando o Cavalo de Tróia entrou na cidade, Cassandra avisou os habitantes que aquele engenho era uma ameaça. Ninguém acreditou nela. Em vez disso, escarneceram-na e apelidaram-lhe de louca.


Ulisses e os seus companheiros saíram do Cavalo de Guerra  e, quando o Rei Tríamo se apercebeu do embuste, já era tarde demais e a cidade acabou por ser conquistada pelos gregos.


25/08/2015

25 de agosto

o sol prescreve já a sombra castanha das betúnias,
uma chuva miudinha esconde a infame notícia do prazer
algumas aves delatam aos mudos a longa viagem
e tu fechas os ombros sobre a tua carne
hibernando um sorriso vagaroso  pela corrente caligráfica
da ribeira de Arade


não sei como consegues ler a  beleza sem angústia, ó poeta

21/08/2015

Padres e sindicalistas, precisam-se

É tal a solidão, o individualismo, o cansaço e a falta de esperança - apenas contrariados por alguns dias de lazer e pela vã ambição de que o nosso clube seja quiçá campeão - que estou convicto que as profissões mais necessárias em Portugal são os padres e os sindicalistas.

20/08/2015

"Luta ou foge" em versão quase poética

Perguntei ao Senhor Google como lidar com o medo.
Do alto da sua torre de fios escandinavos e fluorescentes ,
ele enviou-me  um corvo metálico com a sua indómita resposta:

“Luta ou foge, rapaz”.

E eu, indeciso,  fiquei estático.

Estático como a asa de uma borboleta morta.

fight or flight

Ao tentar compreender um estado de alma que me persegue há meses, perguntei ao Mr.Google, o que fazer com o "medo". Ele respondeu-me: "fight-or-flight!*"

But I stayed static, Mr.Google! Static like a butterfly wing.

* Trad. Lutar ou fugir.




18/08/2015

A imitação dos sonhos

Tomei conhecimento de um blog fascinante: http://funcionario-cansado.escritas.org/

Ao ver estas fotos, perguntei-me se os olhos não são mesmo o espelho da nossa loucura envergonhada?





Desintoxicação

ao Ricardo Simões


branco
sobretudo o branco dos lençóis
de uma enfermaria sem germes

e o horror de ser estranho
à fala dos pássaros
que fazem os ninhos
com anzóis

um quadro pintado por ti
onde tremeluz uma angustia
sempre renovada
por novas séries televisivas

dou-te aquele conselho
que nunca se dá:
abre a mão
e deixa partir os outros
como balões pintados
com acrónimos gamados
às páginas dos jornais


17/08/2015

Leveza (de outrora)

Este fim-de-semana, escolhi uma velho companheiro da estante dos livros, o "Poeta militante" do José Gomes Ferreira. Foi bom recordar o meu primeiro mestre. Encontrei na primeira página este poema escrito por mim, em julho de 1993 - o ano em que nasceu o meu filho.

             Leveza

             Ai, haver alguém que fizesse da minha pele
             um barco de papel e me largasse
             nas ondas de mim mesmo
             para que finalmente encontrasse
             a transcendência de poder estar
             sem o incómodo de viver.

13/08/2015

Psicopolítica de Byung-Chul Han

Numa época em que a tecnologia acelera a disseminação de novos processos, a eficácia da reflexão em tempo útil decai. 

Para atenuar este deficit reflexivo, este livro analisa e conclui sobre o novo paradigma de manutenção do poder: A psicopolítica. Depois do poder soberano medievo e do poder disciplinar da época industrial, surge o poder psicológico da era neo-liberal, onde segundo, o autor, o individuo se submete a ele mesmo e submete os outros - sem tomar consciência disso - levado por uma onda de positividade. O "gosto" do Facebook é  um instrumento exemplar deste novo poder. Também as ferramentas de controlo pan-óptico, à laia de novo Big Brother, são agora acionadas  pelo próprio individuo sobre si mesmo (redes socias). 

Concorde-se ou não com Byung-Chul Han, o mínimo que devemos fazer é refletir sobre o caminho que fizemos nesta Era da Globalização e escolher em consciência os caminhos que queremos e devemos prosseguir.



Psicopolítica (12,00€)
Edição/reimpressão:
2015
Editor:
Relógio D'Água
ISBN:
9789896415402


Coleção:



O que faz sorrir o Hassan ?

Hassan é um marroquino com vinte e poucos anos, com estudos secundárias e uma conversa interessante e inteligente. Hassan trabalha como caseiro de uma propriedade perto de El-Jadida e a 80 Km de Casablanca. Apesar da solidão do seu trabalho, da provável falta de boas condições remuneratórias, de viver num regime absolutista em termos políticos e de o futuro não lhe reservar provavelmente nenhuma melhoria destas condições, o Hassan tem um sorriso verdadeiro, constante e luminoso. Mais do que um sorriso, ele parece feliz - quase diria com toda certeza que o é, na medida possível.

É este o grande mistério que me ocupa o espírito: O que faz sorrir o Hassan ?


12/08/2015

que nunca desejes

desejar apenas não desejar,
como quem regressasse
à manhã anterior do pecado original

e atado à pedra
ficar a contemplar
ludibriando as impossibilidades

com o traço incógnito de uma aguarela



Photograph Untitled by Gonçalo Fonseca on 500px
Foto de Gonçalo Fonseca
Untitled by Gonçalo Fonseca on 500px

10/08/2015

Uma barata de sonho

Hoje tirei o dia, para ensinar uma barata coxa a dançar a valsa.
Pé ante pé, lá chegou ela com as suas perninhas peludas - uma delas meio arrastiça.
Coloquei o disco do Strauss na grafonola e não é que, passado meio dia, o insecto dançava, dançava como uma princesa imaculada no dia do baile de debutantes.





A cruz de luz de Tadao Ando


E se a nossa cruz fosse afinal feita de luz ?



A igreja da luz é a capela princípal da igreja protestante da Ibaraki Kasugaoka. Foi construída em 1989, na cidade de Ibaraki, no distrito de Osaka. Um projeto do arquiteto japonês Tadao Ando, conhecido pelo seu minimalismo e projeção da luz natural.

Rara chama

Rara chama
a que aquece e alumia
e  traz ainda
no espetro azul da labareda
uma faísca de maresia



06/08/2015

Locke

Temos dos filmes duas perspetivas. Uma mais técnica e social, na qual enquadramos uma opinião mais genérica e que nos permite dizer aos amigos: "Vê que é bom". A outra é mais subjetiva e ligada à nossa sensibilidade e memórias. O filme "Locke" de Steven Knight liga-se a esta segunda perspetiva. Por isso não posso consciente dizer que ele é muito bom. Tem uma avaliação de 7,1 no índice do IMDB, o que justifica a classificação de um filme de qualidade. Eu achei-o muito bom por razões pessoais, mas não só. O argumento e o guião são uma lição. O filme, com uma estratégia narrativa muito clássica, explora, como a "Odisseia" de Homero, a viagem do herói. Não a do regresso a casa, mas a da partida. Mas se a qualidade do argumento tem uma dimensão clássica, o filme explora depois um novo conceito das vidas atuais, a ubiquidade. Isto é, a capacidade de estar num curto espaço de tempo, a interagir com muitos universos que, neste caso, não se conhecem entre si. E apenas o indivíduo, o protagonista, os interrelaciona . E a se fusão de espaços exclusivos dentro de um automóvel através de uma telemóvel, não bastasse para nos prender a atenção à história, no banco de detrás do automóvel habita ainda um fantasma. E assim numa história onde um problema conjugal e outro profissional se cruzam, surge ainda este outro personagem, morador apenas na psique de Ivan Locke (Tom Hardy).

Nem que seja pelo  exercício de assistir a um filme passado dentro de um automóvel, onde o único ator com representação corporal (os outros atores apenas emprestam a voz ao filme) vai dialogando ao telemóvel com as outras personagens (vozes), vale a pena ver esta fita. Uma excelente metáfora sobre o nosso quotidiano na madrugada do século XXI.



























Escrito e realizado por Steven Knigth e interpretado por Tom Hardy

05/08/2015

Podem os espíritos morrer ?

Morreu  Ana Hatherly, com 85 anos de idade. Ontem reparei no cartaz da exposição "Tensão e Liberdade" da FCG e achei-o magnífico. Aproximei-me e descobri que se tratava de um trabalho da  Ana Hatherly. Hoje vim a saber que o corpo do dela já não existe, mas o cartaz continua lá.



El Jadida #1

Era habitual em El Jadida (Marrocos) encontrar no final do dia, homens sós a ler e a refletir virados para o mar e não para Meca, onde se viram no momento das orações.

Escrevi sobre este fato, estes curtos versos:

duas estrelas
e quatro luas viajantes
iluminam a praia
onde o homem azul*
olhando o mar
recorda um deserto 
escondido no futuro




*Aos berberes, tribo indígena marroquina, chamam "Homens azuis"











04/08/2015

A forma mais radical de liberdade

Estranhamente, ou talvez não, também  descobri sozinho esta forma de  me sentir menos prisioneiro.




O sorriso do Hassan




Je ne suis pas un autre,
eu sou o outro,
o que me atira sorridentes beijos  
a caminho da aldeia,
o que apenas sobrevivendo
partilha comigo o último pão,
o que preso no seu circo de feras
gasta um gesto verdadeiramente livre
para me cozinhar um cuz cuz.


Je ne suis pas un autre,
eu sou o outro,
o que caminha a meu lado
serenamente,
o que me estende o seu único braço,
o que por mim ora e me faz orar,
o que me faz ter saudades
do inferno, da pestilência invita
que carreguei rente à pele,
e da pureza que descobri dentro dela.


Je ne suis pas un autre,
eu sou o sorriso do Hassan.






















Pedro e Hassan (caseiro de uma propriedade rural) na província de Doukala.