29/05/2014

A arca

Vieram dos quatro cantos do mundo e dos cinco oceanos que  banham esses cantos feitos de praias e arribas solenes. Eram milhares, milhões. Enchiam as pradarias, as planícies e o lombo dos vales. Nenhum deles sabia ao que vinha, mas nem por isso deixaram de caminhar como se um imenso íman os atraísse. Alguns chegaram à esplendorosa arca feita por Noé. Com eles se renovou o ciclo que gira entre os pólos do desespero e da esperança.

Foto do livro "Génesis" de Sebastião Salgado


  

23/05/2014

Clássicos

Em menor ou maior grau,   todas as mulheres partilham a ambição estéril da Madame Bovary e a intriga politica de Lady MacBeth. Em todos os homens, reconheço a assombração traumática de Citizen Kane e o capricho do poder de Rei Lear. Em todos os estados ( entidade jurídica soberana politicamente ), pressinto uma frieza burocrática que faz lembrar "O processo" de Franz Kafka.

 Não apenas, mas também por estas razões, as obras e os seus personagens atrás enunciadas receberam o estatuto de clássicos.

22/05/2014

Crossroads

Sem aviso, ele disse-me que hoje era o último dia de aulas da sua licenciatura. Sem mais nem menos, ficámos os dois numa nova encruzilhada de caminhos. E são imensas e longas as viagens que se perspetivam a partir daqui.

21/05/2014

terra.corpo

Descobri esta expressão enquanto navegava na internet: "terra.corpo" e achei-a muito feliz. Tem atualidade e complementaridade. Numa época de especialização, desenjoa pensar que um corpo faz parte de algo imenso como a Terra. E como qualquer eletrodoméstico, também os corpos humanos deviam ter uma ligação à terra, para não "queimar os fusíveis" da fraternidade para com o mundo.





09/05/2014

07/05/2014

Camaradagem unipessoal

«Em luta!O Capitão não tem barbas
(Isso era literatura): tem medo
Medo da vaga verde, e d'águas bravas;
Disso fez a coragem e o segredo.
Aqui ninguém sente nem chora, é boa!
Aqui - um por todos e todos por um,
Embora, na verdade, não haja mais do que um.»

Vitorino Nemésio (Séc.XX)

Camaradagem

O senhor X, entrando no seu gabinete, apresenta-me o seu colega:
 "Este é que é o gajo que eu tenho de aturar. Ainda por cima é do meu curso." - indicando-me um tipo com óculos debruçado sobre o monitor do computador.
Este responde de pronto: "Tenho uma má notícia para ti, ó lagarto. O Jardim vai para o Mónaco".
O senhor X mostra um ar de frustração tímido e vai à sua vida.

05/05/2014

Sem tempo

Quase sempre
o tempo  cuspe-nos
à praia do tédio.

E mesmo
que à maré nos lancemos,
logo ele nos agarra
para  jusante.

Não há 
como ganhar-te à vida, ó tempo, 
não há.





02/05/2014

Recensão poética de "Tojo" de Miguel-Manso

Deixas que arda
debaixo da pulsação dos astros,
as camadas geológicas da tua pele.

Junto do desfiladeiro,
tomas, como teu, o transe de um xamã
que recita de um  mapa longínquo,
itinerários caminhados para os outros.

Retalhos são retalhos.
O teu poema apenas os semeia,
desperta e tolhe com a foice de uma noiva,
enquanto a primeira luminescência
se advinha
três polegadas antes da origem da luz.

Sim,
os teus poemas são retalhos
presos por fios de letras & giz.

O poeta Miguel-Manso

"Tojo" de Miguel-Manso - Ed. Relógio D'Água